Lisa 17/04/2022
Sob o véu da escuridão
Ler Murakami para mim é uma experiência que começa bem antes da leitura. Há um ritual e expectativas que se eliciam e evocam, enlaçando-se e perseguindo-se tal qual os saxs de Star-Crossed Lovers. Quando penso nesse autor me vem como imagem mental uma valsa estelar, música e dança em um espaço escuro, belo, estranho, a seu modo acolhedor e ao mesmo tempo inesperado e desconhecido. Seja como for, você não é capaz de desviar o olhar.
Como sempre, preciso falar do quanto gosto da trivialidade em sua prosa, da passagem lenta e na medida, sem pressa dos movimentos de seu personagem. "Após Anoitecer" começa nos segundos antes da meia-noite e percorre essa faixa de escuridão até o nascer do sol. Período em que de acordo com ele "lugares como essa fenda abrem sorrateiramente os portões da escuridão. São regiões onde nossos princípios não valem nada. Ninguém poderá prever quando e como alguém será tragado por esse abismo nem quando e como será cuspido de volta". Aqui se inicia o flerte com o fantástico, presente em todas as suas obras. Personagens que desaparecem e retornam sem motivos, sonhos fantasiosos e ao mesmo tempo reais, quadros que abrem janelas pra outros mundos. Nesse em questão, televisões e espelhos que nos mostram sombras e duplos.
Somos guiados por um narrador onipresente, até certo nivel onipotente e em certa medida onisciente, que conversa conosco e nos tira da boca as mesmas dúvidas que temos, nos antecipando a resposta ou informando que também não sabe, ou ao menos, não revelará. Vemos assim histórias conectadas a sua maneira no fio de uma madrugada como qualquer outra, com pessoas comuns, que estão a seu próprio modo, tentando fugir ou refugiarem-se de suas realidades pelo sono, pela identidade, pelo trabalho, pelo véu da noite.
Os ponteiros do relógio seguem preguiçosamente, o ciclo do dia se reinicia, mas nenhum outro círculo aqui se fecha, os mistérios seguem enigmáticos, os dilemas, tanto os velhos como os novos surgem e continuam. E que importa? Precisamos encontrar sentido em tudo? O tempo devora a tudo e não espera ninguém e assim a vida segue aberta em sua infinitude de possibilidades. Tudo está bem mesmo que nem tanto. O ritmo se mantém e em algum lugar o jazz continua ficando a espera da próxima hora de escuridão.