Direito e Razão

Direito e Razão Luigi Ferrajoli




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Paulo Silas 26/12/2017

“Direito e Razão” é a mais densa obra de Luigi Ferrajoli, na qual se estabelece toda a robusta Teoria do Garantismo. Conforme destaca Norberto Bobbio no prefácio à 1ª Edição Italiana da obra, “Direito e razão” “é a conclusão de uma vastíssima e devotada exploração continuada por anos nas mais diversas disciplinas jurídicas, de modo especial no direito penal, e de uma longa e apaixonada reflexão nutrida de estudos filosóficos e históricos, sobre os ideais morais que inspiram ou deveriam inspirar o direito das nações civis” . Primeiro ponto de destaque, portanto, que julgo válido evidenciar, é que não se trata de uma Teoria voltada para o âmbito penal exclusivamente. Sim, o enfoque se dá na seara das ciências criminais (considerando diversos de seus vieses) – inclusive, o próprio Ferrajoli evidencia na introdução da obra que o livro “deseja contribuir com a reflexão sobre a crise da legitimidade que assola os hodiernos sistemas penais [...] com respeito aos seus fundamentos filosóficos, políticos e jurídicos” . No entanto, a pretensão do autor vai além, de modo que estabelece uma Teoria com a pretensa ideia de que seja estabelecida no Direito como um todo – considerando suas várias disciplinas e ramificações.

A escolha da palavra “razão” para constar no título da obra se deu de modo que deve ser compreendida em três sentidos diversos, quais sejam, a razão no direito (num sentido mais teórico, designando a “racionalidade das decisões penais” ), a razão do direito (num sentido axiológico e político, designando a temática das “justificações ético-políticas da qualidade, da quantidade e [...] da necessidade das penas e das proibições” ) e razão de direito penal (num sentido normativo e jurídico, pertencendo aqui à ciência penal, dentro, portanto, da “teoria geral do direito e [...] dogmática penal de cada ordenamento”, designando a ideia da “validade ou coerência lógica interna de cada sistema penal positivo entre os seus princípios normativos superiores e suas normas e as suas práticas inferiores” ). Ferrajoli pretende, assim, fazer uma profunda revisão teórica do modelo garantista que se estabeleceu com o pensamento iluminista, de modo que busca expor as bases da legalidade penal e processual penal a partir de pressupostos epistemológicos, de justificação ético-política e das técnicas das normas que visam dar efetividade àquilo que propõem - logrando êxito o autor em tal intento, uma vez que a digressão nesses termos é feita com maestria, cada qual dessas exposições auxiliando para com a construção de sua Teoria, já que pelos aportes que apresenta é possível compreender as origens que todo o sistema que o autor desvela.

Ferrajoli divide sua obra em cinco partes: “Epistemologia. A razão no direito penal”, Axiologia. As razões do direito penal”, “Teoria. As razões do direito penal”, “Fenomenologia. A ineficácia das garantias no direito penal italiano” e “Para uma Teoria Geral do Garantismo”.Sistematicamente, o autor expõe e dá corpo para a construção de sua proposta, buscando sempre nas origens do cerne da problemática exposta em cada parte.

No primeiro capítulo, “Cognitivismo ou decicionismo”, tem-se a ideia da epistemologia garantista. O direito penal dos ordenamentos que se conhece é demonstrado como sendo um produto moderno. O esquema epistemológico apresentando é denunciado como portador de um “defeito fundamental de corresponder a um modelo limite, amplamente idealista” , ou seja, da forma com a qual foi concebido, jamais foi realizável e nunca será. Um dos principais problemas nesse impasse é a interpretação da lei, uma vez que o juiz é um ser humano, logo, devendo se levar em conta suas vicissitudes. Ferrajoli ainda apresenta nesse capítulo alguns modelos autoritários de legalidade penal e processual penal, trazendo aqui também o problema da verdade processual. Para o autor, “se uma justiça penal integralmente “com verdade” constitui uma utopia, uma justiça penal completamente “sem verdade” equivale a um sistema de arbitrariedade” . Nesse ponto, Ferrajoli estabelece o que o garantismo entende por ‘verdade’, trabalhando ainda com suas diversas noções: verdade formal, verdade processual, verdade como correspondência, verdade fática, verdade jurídica, verdade aproximativa... Ferrajoli vai optar por um tipo próprio de verdade processual, estabelecendo limites para tal. A partir disso, estabelece que poderia ser estabelecidos graus de garantismo de acordo com o grau de decidibilidade da verdade processual que os sistemas penais permitam normativamente e satisfaçam tal pretensão de verdade de maneira concreta. Segundo o autor, “o direito é um universo linguístico artificial que pode permitir [...] a fundamentação dos juízos em decisões sobre a verdade, convalidáveis ou invalidáveis como tais, mediante controle lógicos e empíricos” – daí que o problema do garantismo seria “elaborar tais técnicas no plano teórico , torna-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efetividade no plano prático” .

No capítulo seguinte, “Modelos de direito penal”, Ferrajoli estabelece os famosos princípios fundamentais do seu modelo garantista de direito penal. Empregam-se onze termos na formulação dos princípios: “pena, delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa” . Surgem então os axiomas garantistas, os quais prescrevem o que deve ocorrer no âmbito garantista do modelo de direito penal e processual penal proposto. Assim, “cada uma das implicações deônticas – ou princípios – de que se compõe todo modelo de direito penal enuncia [...] uma condição sine qua non, isto é, uma garantia jurídica para a afirmação da responsabilidade penal e para a aplicação da pena” , de modo que os dez axiomas do garantismo penal daí surgem, tratando-se de um modelo limite, o que se faz mediante o estabelecimento das famosas máximas latinas:

“A1 Nulla poena sine crimine [princípio da retributividade]
A2 Nullum crimen sine lege [princípio da legalidade]
A3 Nulla lex (poenalis sine necessitate [princípio da necessidade]
A4 Nulla necessitas sine injuria [princípio da lesividade]
A5 Nulla injuria sine actione [princípio da materialidade]
A6 Nulla actio sine culpa [princípio da culpabilidade]
A7 Nulla culpa sine judicio [princípio da jurisdicionariedade]
A8 Nullum Judicium sine accusatione [princípio acusatório]
A9 Nulla accusatio sine probatione [princípio do ônus da prova]
A10 Nulla probatio sine defensione [princípio do contraditório]”

São essas máximas, esses princípios, que estabelecem a Teoria do Garantismo Penal. Nas palavras do autor, “estes dez princípios [...] definem o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal, isto é, as regras do jogo fundamental do direito penal” , os quais são explicados criteriosamente nas páginas seguintes desse capítulo.

“O poder punitivo entre verificação e valoração” é o capítulo seguinte da obra. Aqui, Ferraojli se debruça sobre a interpretação, ou o poder de denotação e as garantias penais. Para tanto, trabalha com as ideias de ‘significado’ e ‘verificabilidade’, imergindo-se assim na linguagem penal. Estabelece, por exemplo, dentro de sua Teoria, que ‘prova’ seria “o fato probatório experimentado no presente, do qual se infere o delito ou outro fato do passado” e ‘indício’ como sendo “o fato provado do passado, do qual se infere o delito ou outro fato do passo que, por sua vez, tenha o valor de um indício” . A partir disso, problematiza as ideias de prova a partir do poder de sua verificação – isso sob a ótica das garantias penais e processuais penais, a fim de verificar quando e se presentes. A preocupação de Ferrajoli se dá principalmente sobre o liame existente entre ‘poder de verificação’ e ‘poder de disposição’, residindo aí a problemática de como se dá a produção de provas no processo, buscando estabelecer meios para se conter esse ato enquanto exercício de repressão, o qual se estabelece quando confiado o juízo de comprovação à vontade discricionária do juízo – que certamente acaba se voltando para o arbítrio. É por isso que o autor lembra que o garantismo penal é “um modelo cognitivo de identificação do desvio punível, baseado em uma epistemologia convencionalista e que comporta refutações [...] tornada possível pelos princípios de legalidade estrita e de estrita jurisdicionalidade” , uma vez que o que se busca é a justiça formal.

No quarto capítulo do livro, “Os fundamentos do direito penal”, Ferrajoli apresenta as justificações existentes para o direito penal, buscando estabelecer uma que seja legítima e apta a fundacionar um sistema punitivo. Vai falar, por exemplo, em ‘legitimação externa’ quando se refere à “legitimação do direito penal por meio de princípios normativos externos ao direito positivo, ou seja, critérios de avaliação moral, políticos ou utilitários de tipo extra ou metajurídico” e em ‘legitimaçã interna’ enquanto a “legitimação do direito penal por via de princípios normativos internos ao próprio ordenamento positivo, vale dizer, a critérios de avaliação jurídicos, ou, mais especificamente, intrajurídicos” . Essa separação de legitimação interna e externa, entre direito e moral, é um resultado de um longo e gradativo processo de secularização do direito penal. Essa separação é uma doutrina bastante complexa, de modo que Ferrajoli a divide em seis ordens de teses. Nesse capítulo o autor ainda estabelece os fundamentos filosóficos do garantismo penal (se, porque, quando e como punir, proibir e julgar).

No quinto capítulo, “Se e por que punir, proibir e julgar. As ideologias penais”, Ferrajoli avança nos fundamentos filosóficos do direito penal (“O problema da justificação da pena [...] é, talvez, o problema clássico, por excelência, da filosofia do direito” ) mediante a análise das doutrinas que justificam ou refutam o modelo punitivo estatal. Enfrenta inicialmente a doutrina abolicionista, da qual discorda. O autor considera abolicionista somente as doutrinas axiológicas que refutam o direito penal por o entenderem ilegítimo ou por entenderem inadequadas as penalidades por esse sistema impostas. Em que pese Ferrajoli sustente a necessidade de redução das penas detentivas, tendo em vista suas excessivas aflições produzidas ou até mesmo inúteis, defende a forma jurídica da pena, ou seja, contra a ideia do abolicionismo, uma vez que entende a pena “enquanto técnica institucional de minimização da reação violenta à deviação socialmente não tolerada e enquanto garantia do acusado contra os arbítrios, os erros conexos a sistemas não jurídicos de controle social” . Com base nisso, Ferrajoli perpassa por escolas abolicionistas com o fito de apresenta-las, porém, refutando-as. Passa também por outras ideias de justificações retributivistas e utilitaristas da pena, situando o leitor em diversos aportes filosóficos que buscavam dar sentido à punição, evidenciando ainda os equívocos teóricos dessas doutrinas. A conclusão do autor se dá nos seguintes termos: “para que um sistema penal possa dizer-se justificado mister que se avalie a sua funcionalidade, confrontando, entre si, entidades homogêneas, e fugindo, assim, à objeção kantiana, mesmo em relação a um outro tipo de objetivo, não menos importante do que a prevenção dos delitos, qual seja, a prevenção das punições excessivas, e incontroladas, dotadas igualmente de uma certa capacidade preventiva frente aos delitos, que na ausência desta retornariam” .

“O objeto e os limites do direito penal. Um utilitarismo penal reformado” é o sexto capítulo da obra, no qual o autor busca encampar com novas arestas a ideia do “por que punir”, redefinindo conceitos, justificações e finalidades a fim de dar razão a ideia da punição dentro da ideia que defende em seu constructo teórico. Daí que seus questionamentos ganham maior abrangência dentro desse viés. Por exemplo, a pergunta “por que punir” passa a ser compreendida em dois sentidos diversos: “por que existe a pena” e “por que deve existir a pena”. Ferrajoli perpassa também por doutrinas de justificação (“discursos jurídicos sobre a justificação, vale dizer, sobre os objetivos justificantes”) e justificações (“discursos assertivos acerca da correspondência [...] entre as finalidades normativamente assumidas e as funções assertivamente explicadas e reconhecidas” ). Uma das razões a qual Ferrajoli chega enquanto o objetivo geral do direito penal estaria identificada com “o impedimento da exercício das próprias razões, ou, de modo mais abrangente, a minimização da violência da sociedade” , entretanto, o autor alerta que não só por esse prisma deve ser o objetivo do direito penal observado, mas, numa visão mais holística e condizente com sua proposta e justificação idônea, o objetivo seria “a proteção do fraco contra o mais forte: do fraco ofendido ou ameaçado com o delito, como o fraco ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o réu e na vingança é o ofendido ou os sujeitos públicos ou privados que lhes são solidários” . A partir de robustas premissas, Ferrajoli constrói aqui um novo modelo de justificação para o direito penal.

No capítulo que segue, “A pena. Quando e como punir”, Ferrajoli prossegue estabelecendo a estrutura normativa do Estado de direito, dirimindo questões pertinentes a justificação externa (ou política) e legitimação interna (ou jurídica) no Estado de Direito. Aqui o autor trabalha problemas referentes a pena, ao delito e ao processo penal, ou seja, sobre quando e como se punir, sobre quando e como se proibir e sobre quando e como se julgar. É também aqui que se estabelece as suas noções de legitimidade, validade, vigência e efetividade no Estado constitucional de direito. Para Ferrajoli, a definição teoria de “direito válido” continuaria sendo ideologicamente neutra, uma vez que “é válida ainda que seja injusta qualquer norma ou preceituação que esteja conforme as normas acerca de sua produção” . A ‘vigência’, portanto, seria “a validade apenas formal das normas tal qual resulta da regularidade do ato normativo” , enquanto que a ‘validade’ teria por significação a “validade também material das normas produzidas, quer dizer, dos seus significados ou conteúdos normativos” . A partir de então, o autor problematiza com rigor essa ideia de vigência e validade das normas a partir de suas justificações internas e externas, chegando a estabelecer que “o juízo de validade acerca de uma norma não é somente um juízo de fato sobre os requisitos formais que fazem-na reconhecível como quod principi placuit e que por isso legis habet vigorem; é também um juízo de valor acerca dos conteúdos substancias que fazem juridicamente legítimo quod principi placuit” . Ainda, quando dialoga sobre a pena, consequentemente traz à tona a discussão e a exposição acerca da história dessas, estabelecendo-a (a história das penas) como a “mais horrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos” . Daí que são propostas diretrizes quanto ao estabelecimento da pena e a forma de seu cumprimento, defendendo que “os tipos de pena que se podem conceber como alternativa à privação de liberdade são numerosos e variados” , uma vez que a liberdade é um direito personalíssimo e merece a mais ampla proteção.

O oitavo capítulo, “O delito. Quando e como proibir” traz à discussão os problemas substanciais do direito penal. O que diferencia uma conduta que merece mera reprovação moral daquela em que se faz necessária a proibição penal? É tal questão que serve como mote para o que se trabalha nesse capítulo. Ferrajoli vai dizer que “é a separação entre delito e moral que, por um lado, impõe o dever de justificar as proibições e também os castigos e, por outro, permite falar de uma ética da legislação, por meio da qual pode-se criticar as leis como imorais ou, pelo menos, como injustificadas” . Porém, para tanto, há de se enfretar questões espinhosas como o relativismo ético e o relativismo jurídico, a fim de se ponderar sobre o que e de que modo merece a proibição no âmbito penal - e isso é feito com maestria pelo autor. Faz-se, assim, necessária passar pelos princípios da necessidade e da lesividade, consequentemente passando a se estabelecer o que seriam os bens jurídicos aptos a serem tutelados pela norma penal. Sobre esse delicado conceito, Ferrajoli faz uma análise de suas problemáticas, expondo as diversas nuances que precisam ser trabalhadas para que a sua definição enquanto necessitante de proteção seja legítima, acabando por trazer vários elementos da teoria do crime e trabalhando com esses a fim de logra êxito nesse intento.

No capítulo que segue, “O juízo. Quando e como julgar”, os valores da jurisdição pela ótica do garantismo passam a ser analisados. Isso porque “a principal garantia processual que forma o pressuposto de todas as outras é a da submissão à jurisdição” , de modo que o trato devido às questões do juízo, da jurisdição, do ato de julgar, merecem especial atenção. A submissão à jurisdição é posta como uma importantíssima garantia, uma vez que condição de possibilidade para que as demais surtam seus efeitos de proteção ao “mais fraco”. Ferrajoli aqui vai analisar os diversos modelos jurisdicionais, a fim de buscar estabelecer o mais adequado à sua Teoria. A presunção de inocência deve ser um dos motes que conduzem a jurisdição. Conforme pontua o autor, “toda vez que um imputado inocente tem razão de temer um juiz, quer dizer que isto está fora da lógica do Estado de direito” , de modo que as bases garantistas estabelecidas merecem estrita observância. É aqui também que Ferrajoli vai tratar da prisão processual, ou seja, daquela que não é fruto de uma condenação, expondo, desde suas matizes históricas, todas os problemas que residem na ideia da “prisão preventiva”, estabelecendo, por exemplo, que “toda prisão sem julgamento ofende o sentimento comum de justiça, sendo entendido como um ato de força e de arbítrio” , chegando a propor um processo em que não exista a prisão preventiva. Também são estabelecidos os princípios norteadores do processo dentro de um sistema garantista, a saber, aqueles ligados a um legítimo sistema acusatório de processo.

O décimo capítulo, “O subsistema penal ordinário”, lança luz à ineficácia das garantias no direito penal italiano. Ferrajoli expõe aqui diversas problemáticas que dizem respeito ao processo penal italiano, trabalhando com a ideia de sistema e subsistemas penais, a crise da forma legal e judiciária no direito penal, a noção legal de crime no direito italiano, as garantias substanciais e os elementos constitutivos do crime e várias outras questões, chegando a denunciar uma hipertrofia penal existente na Itália, deixando de se observar o direito penal enquanto ultima ratio, destacando diversos casos daquilo que vai chamar de patologia judiciária.

No capítulo onze, “O subsistema penal de polícia”, a preocupação é voltada para o monopólio penal da violência repressiva e sua possível inefetividade. Sua fala logo no início do capítulo expõe de forma clara de que modo sua preocupação se estabelece: “pouco importa que em um país não exista pena de morte se a morte é inflingida ilegalmente, como sucede em muitos regimes ditatoriais ou, também, por meios extralegais, como sucede em muitos países avançados nos confrontos constantes e injustificados entre a polícia e os delinquentes” . É daí que deve se atentar para o grau de efetividade do suporte normativo em que se sustenta o direito penal e o processual penal, de modo que as penalidades advenham tão somente através das formas jurisdicionais. Ferrajoli passa então a determinar as funções que competem à polícia num Estado de direito, chegando a fazer uma tipologia das medidas de polícia. O uso desmedido do cárcere preventivo, por exemplo, de caráter intimidatório, seria uma medida tipicamente policialesca.

“O subsistema penal de exceção” é o capítulo que segue, onde Ferrajoli vai tratar das ideias de emergência penal, razão de Estado e Estado de direito. A distinção que é feita por Ferrajoli é bem criteriosa, não deixando de estabelecer pontuações no sentido de que uma coisa não faz com que outra deixe de significar. Ao falar das leis de emergência, por exemplo, estabelece que muitas injustiças desse fenômeno surgiram, “mas as críticas das leis excepcionais não podem afastar a responsabilidade dos muitos juízes que transgrediram, frequentemente, aquelas mesmas leis” . O autor aponta aqui para a incompatibilidade entre Estado de direito e direito penal de exceção, além de estabelecer a diferenciação entre razão de Estado e Estado de direito. Ferrajoli vai dizer que “na jurisdição o fim não justifica os meios, dado que os meios, ou seja, as regras e as formas, são as garantias de verdade e de liberdade, e como tais têm valor para os momentos difíceis, assim como para os momentos fáceis” . Com a fundação de direito penal sedimentado no garantismo, todas as formas de disciplina especial ou de exceção deveriam ser abandonadas, além de que as funções da polícia deveriam figurar como puramente auxiliares do sistema.

“O que é garantismo”, o décimo terceiro capítulo do livro, traz a Teoria do Garantismo em todo o seu rigor metodológico, demonstrando possuir espaço para aplicação não apenas no âmbito penal, mas também nas demais disciplinas do direito. Ferrajoli estabelece inicialmente três significados para aquilo que pode ser entendido como ‘garantismo’: a designação de “um modelo normativo de direito” ; a designação de uma “teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas” ; a designação de “uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade” . Diante disso, Ferrajoli vai dizer que com base nesses significados de ‘garantismo’ é possível que sua Teoria tenha um alcance teórico e filosófico geral, o qual é explicado amiúde pelo autor. O garantismo seria, assim, um modelo de direito, estabelecendo-se num Estado de direito e democrático. Aliás, para Ferrajoli, ‘Estado de direito’ seria sinônimo de ‘garantismo’. O garantismo seria, portanto, base para uma democracia substancial, servindo como “técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir” . O garantismo seria também a doutrina da fundação externa do Estado sobre os direitos essenciais dos cidadãos. O garantismo, num sentido filosófico-político, consistiria na fundação heteropoiética do direito. Seria, portanto, o garantismo uma Teoria aplicável num nível de abrangência além do direito penal. Comportaria se tratar de uma teoria do próprio direito.

O livro encerra com o capítulo “O ponto de vista externo”, onde Ferrajoli trata da tutela dos direitos findamentais pela ótica do garantismo. Esse ponto de vista externo seria o ponto de vista das pessoas. “O seu primado axiológico, consequentemente, equivale ao primado da pessoa como valor, ou seja, o valor das pessoas, e portanto, de todas as suas específicas e diversas identidades, assim como da variedade e pluralidade dos pontos de vista externos por elas expressos” . Através da ideia da igualdade jurídica, seja no plano formal ou no plano substancial, esta poderia ser definida como igualdade nos direitos fundamentais. A importância dos direitos fundamentais pode ser considerada quando esses correspondem aos valores e as carências das pessoas, uma vez que “é da sua qualidade, quantidade e grau de garantia que pode ser definida a qualidade de uma democracia e pode ser mensurado o progresso” . Ferrajoli defende, portanto, o garantismo como instrumento para a própria legitimação de uma democracia plena.

“Direito e Razão” é um livro robusto, de peso, complexo, recheado de referenciais teóricos sólidos, culminando assim numa teoria que, por mais que cabíveis algumas críticas e ponderações em certas passagens (em menor ou maior grau) – ensejando inclusive em discordância por alguns vieses, é extremamente rica em fornecer elementos de justificação para o direito penal, indicando ainda diversos pontos críticos que refutam sistema e formas de direito penal que não se sustentam. A preocupação de Ferrajoli é, principalmente, coma legitimidade de um direito coeso, que se estabeleça e se oriente por diretrizes que culminem num direito reconhecido como válido e vigente, encontrando assim sua ancoragem numa legitimação que lhe dê o suporte para que produza seus efeitos.

Uma obra digna que merece e deve ser lida por todos!
Paulo Silas 26/12/2017minha estante
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