Aline T.K.M. | @aline_tkm 29/06/2014Cruel e verdadeiroJennifer Egan nos brinda novamente não com uma, mas diversas tramas que se misturam, dão voltas, se enrolam e desenrolam em uma busca comum a todas elas: a da identidade.
Começamos com Charlotte Swenson, que em primeira pessoa dá sua perspectiva dos fatos. Após um acidente de carro a caminho de Rockford, sua cidade natal, a então modelo tem seu rosto extremamente ferido. Com a reconstrução facial – e 80 parafusos de titânio – seu rosto não é mais o mesmo; ainda bonita, mas irreconhecível, Charlotte é quase uma estranha em uma Nova York hostil, um mundo onde ela já não encontra o mesmo prestígio.
Em seguida e através de um narrador onisciente, somos apresentados aos demais personagens. A também Charlotte, uma adolescente desiludida que começa uma relação com um homem mais velho, mantendo duas vidas paralelas; e seu irmão mais novo, recém-saído de um câncer. Moose, um acadêmico antissocial; Anthony, um detetive particular alcoólatra; e um sujeito misterioso que vive trocando de nome, endereço e sotaque, e que conspira contra a sociedade americana.
De maneira perversa, quase um aquário que recria o mundo em miniatura, Olhe para mim apresenta diferentes facetas do ser humano. Pessoas que guardam segredos – às vezes difíceis de carregar – e vivem múltiplas vidas. E que em uníssono gritam por socorro, mendigam olhares, imploram por compreensão.
Charlotte, a modelo, acaba por se aproximar de sua história pessoal, que até então renegava. O novo rosto é o anúncio de uma nova vida na qual é preciso encontrar seu lugar, um novo papel para desempenhar e novas soluções para alcançar velhos objetivos. Adentrar a sala espelhada da fama requer mais do que ela imagina.
Já Moose, encerrado em seus conhecimentos e dono de uma visão singular (e obsessiva) para a qual procura o herdeiro certo, caminha em direção à coletividade e ao futuro de uma humanidade há muito condenada. E Charlotte, a menina, até poderia ser a herdeira da visão de Moose – que é seu tio e passa a lhe dar aulas –, não fosse o fato de não estar inteiramente envolvida com isso. Carente de atenção e mergulhada em dilemas, a adolescente deixa a meninice colorida para trás enquanto se transforma em uma mulher de olhar suficientemente cinzento.
Jogando com a ideia do coletivo/individual e do público/privado, a trama caminha por vias tortas, levando os personagens rumo ao fundo do poço até que o desespero decida ditar as regras. Afinal, quanto de sua vida pertence mesmo a você? A necessidade de amor; o conhecimento que atinge a obsessão; a busca pela fama e reconhecimento; o ódio e a conspiração... Tudo isso é capaz de tomar as rédeas e nortear os rumos de um ser humano. E o que dizer da era do virtual, onde vidas são compartilhadas, assistidas e lidas como capítulos de uma interminável novela? No meio do caminho fica a identidade, esperando ser achada, embalsamada num véu quase utópico.
De repente, perde-se tudo. Abundam a solidão e as lacunas. É preciso encontrar-se a si mesmo – pela primeira vez – e saber o que fazer com aquilo que foi encontrado.
LEIA PORQUE...
Egan faz um bem-bolado inteligente abordando a superficialidade e as aparências, o sentimento, a identidade e questões mais profundas. Livro para pensar.
DA EXPERIÊNCIA...
Leitura excelente. Mas, ao contrário de muitas opiniões que vi por aí, não achei o livro melhor ou pior que A visita cruel do tempo; penso que ambos são ótimos, cada qual à sua maneira, e que não há muito lugar para comparações.
FEZ PENSAR EM...
Bubble Gum, da francesa Lolita Pille. Apesar de diferir no estilo da narrativa, este último também visita o mundinho do glamour e da fama – e o que há de podre nele.
site:
http://livrolab.blogspot.com