Craotchky 06/10/2023DualidadesHiroshima, de John Hersey, fez com que eu me sentisse mal; mas talvez não pelas razões que você possa estar pensando... mais adiante no texto me explicarei...
A obra está imbuída ao menos de duas dimensões: uma delas é a dimensão histórica e a outra é a dimensão do enfoque. Historicamente é inegável a relevância do livro. Foi a primeira reportagem a ganhar uma edição inteira da revista The New Yorker e sua tiragem de 300 mil cópias esgotou em poucas horas. Posteriormente, o texto foi narrado na íntegra em rádios. Não demorou muito para o trabalho se converter em livro.
Na outra esfera, ao adotar um enfoque nos sobreviventes e seus relatos, o autor fez com que o evento da bomba atômica pudesse ser associada a alguma pessoalidade. A humanização da catástrofe através de uma abordagem intimista (no que se refere a conteúdo, mas não em forma narrativa) tornou mais palpável a dimensão do incalculável impacto da bomba atômica na vida das pessoas afetadas, bem como outras consequências humanas decorrentes dela.
Enquanto a dimensão histórica é incontestável e a escolha de abordagem foi pioneira ao humanizar o acontecimento, a disposição narrativa adotada por Hersey foi emocionalmente distante, uma vez que o texto se trata de uma reportagem jornalística. Aliás, a consciência de que o texto é uma reportagem, e que portanto não foi originalmente pensado em formato de livro, é fundamental para compreender os motivos da parca contextualização histórica e aprofundamento biográfico das pessoas retratadas.
Essa característica do texto, de uma narrativa emocionalmente distante, (não estou criticando, estou apenas constatando) não me proporcionou um movimento de empatia. Para mim, a leitura teve um caráter didático: assimilei conteúdos históricos, aprendi um pouco sobre como foram aqueles dias para aquelas pessoas, o quanto a cidade foi destruída e as curiosas implicações da cultura japonesa na forma com que eles encararam algumas situações (exemplo: muitos tinham vergonha de ter sobrevivido).
Considerando todo esse contexto, finalmente posso confessar o que fez eu me sentir mal: foi justamente o fato de que no decorrer de toda a leitura não me envolvi emocionalmente, não fui emocionalmente impactado em momento algum, embora tenha, racionalmente, apreendido a magnitude da tragédia. Atribuo isso à distância emocional que caracteriza o estilo empregado. A narrativa é bastante objetiva e literal, se limitando em tão somente apresentar os fatos de maneira pragmática. Novamente: não se trata de uma crítica, apenas de uma constatação.
(A narrativa emocionalmente distante ao menos, porém, tem a vantagem de tornar o texto isento de qualquer inclinação, julgamento e interpretação do autor. O(A) leitor(a), portanto, é livre e independente enquanto consumidor de um texto que se limite aos fatos relatados, pretendida sem qualquer viés moral e/ou político.)
Como era de se esperar, a leitura me fez pesquisar e assistir vídeos sobre Hiroshima e Nagasaki, o que me levou a mais conteúdo assimilado. No fim, para mim, a leitura foi bem o que eu disse antes: didática. Não me provocou o movimento de empatia que era de se esperar. Agora fico eu aqui, me sentindo mal por não ter me sentido mal...
EXTRA:
"Ainda se perguntam por que estão vivas, quando tantos morreram. Cada uma delas atribui sua sobrevivência ao acaso ou a um ato da própria vontade - um passo dado a tempo, uma decisão de entrar em casa, o fato de tomar um bonde e não outro." - página 8.
Eis um trecho que me chamou muito a atenção. Aparentemente, nenhum dos seis sobreviventes da imensurável devastação atribuiu sua milagrosa sobrevivência a qualquer divindade. (Vale considerar que um era reverendo e outro era padre.)
(Adendo acrescentado após os comentário de dona Nathemocionalmenteenvolvida; adendo acrescentado para tentar explicar as razões pelas quais o fato de que a narrativa ter uma forma emocionalmente distante não é um "percepção" particular.)
Associadas ao livro Hiroshima vemos expressões como "relatos dos sobreviventes" ou "depoimentos dos sobreviventes". Por isso acho importantíssimo destacar que esses relatos/depoimentos foram coletados pelo autor que a partir deles escreveu a reportagem. Em essência essa reportagem é a reconstituição do que aconteceu. É fundamental ficar claro que os depoimentos/relatos dos sobreviventes não aparecem no livro. Assim o autor foi uma espécie de intermediário enquanto veículo que organizou, elaborou e publicou a história a partir dos relatos/depoimentos.
Entendendo isso, fica mais simples também compreender os motivos que o levaram a tecer uma forma narrativa emocionalmente distante. Caso os depoimentos/relatos fossem transcritos diretamente, falariam por si, e revelariam seu conteúdo aos leitores(as) de forma naturalmente direta, isto é, sem mediador. Como não foi o caso do livro, ao assumir a tarefa de reconstituir a história a partir dos relatos/depoimentos, o autor intencionalmente empregou uma forma narrativa que o permitisse ser o mais isento, o mais neutro, o mais cristalino, o mais invisível possível. Nas palavra dele mesmo na página 168 "assim a experiência do leitor poderia ser o mais direta possível".)