Alessandro232 20/02/2023
Uma intensa jornada pelo horror da civilização
"Coração das Trevas" é um livro difícil de ser definido, até mesmo dentro de um gênero específico. Aparentemente, é o relato de um marinheiro pelo interior da África, descrito com um local exótico, cheio de perigos. No entanto, gradativamente, ao "mergulharmos" mais profundamente na trama de "Coração das Trevas", percebemos que essa obra não é somente uma história de aventura.
Apesar de pequeno, -cerca de um pouco mais de 100 páginas, o livro é imenso em sua complexidade. Conrad em "Coração das Trevas" para atrair e "fisgar" o leitor, faz uso de um recurso típico da narrativa do século XIX - a história dentro de uma história. Dentro da chamada narrativa moldura, temos um narrador desconhecido, um marinheiro que fala sobre uma noite na qual um de seus companheiros também marinheiro, Charles Marlow - alter ego de Joseph Conrad que também trabalhou muitos anos na marinha mercante - reuniu os membros da tripulação de um navio e contou a eles a respeito de estranhos eventos que se passaram em algum lugar do continente africano. É interessante como narrativa aparentemente moldada como uma espécie de "história de viagem" aos poucos ganha contornos assustadores e até mesmo insólitos e míticos.
Um dos grandes méritos do livro, é com certeza a escrita de Conrad que adquire matizes que podem ser chamadas de "alucinatórias", criando assim ao longo da narrativa uma espécie de atmosfera sobrenatural. Também no que se refere à escrita, destacam-se detalhadas descrições da Natureza selvagem, nas quais são ressaltados elementos pictóricos, de modo que o leitor se sinta participando com o narrador por um trajeto, no qual os lugares tornam-se cada vez mais exóticos e perigosos - essa sensação parece ser ampliada se o texto for lido no original.
Sobre a trama, pode-se dizer que o livro pode ser compreendido em duas camadas: uma mais superficial, como uma jornada pelos recônditos da África, com seus mistérios e também seus horrores que, por seu turno, são inspirados em horrores reais relacionados com a exploração do povos primitivos, o que revela a face mais cruel e desumana do colonialismo europeu.
Também de modo mais complexo, e, mais instigante, como um assustador percurso pelo lado oculto da psique humana, relacionado aos desejos e instintos primitivos, bárbaros e até mesmo bestiais.
Além disso, Joseph Conrad também apresenta ao leitor um dos mais fascinantes personagens da literatura: o capitão Kurtz, provavelmente, a melhor criação do autor. Assim como outros vilões que representam o que há de pior na natureza humana, como Heatchcliff, capitão Ahab, Kurtz mesmo após o término da leitura, permanece um enigma a ser decifrado, - do mesmo modo que sua última fala: o horror, o horror.
"Coração das Trevas", principalmente, ao revelar o que esconde de bárbaro no aspecto civilizado, permanece um livro muito atual. Por trás de ficção, de seu aspecto fantástico, "Coração das Trevas" consegue fazer uma denúncia "realista" a respeito da barbárie que ocorreu durante o processo de colonização, revelando horrores tão terríveis que nem mesmo o narrador, Marlow é capaz de compreender. Dessa forma, Conrad em "Coração das Trevas" consegue arrancar a máscara do bom colonizador e mostrar seu lado mais sinistro, selvagem e primitivo.
São poucos autores que conseguiram explorar com tanta mestria os horrores contidos na alma humana. Conrad sem sombra de dúvida é um deles. Ele é um autor brilhante, com uma escrita sofistica e muito bem elaborada, mas, infelizmente um pouco esquecido na atualidade, mas que merece ser redescoberto. Sendo "Coração das Trevas" sua obra-prima e um livro de leitura obrigatória que antecipou outros horrores reais, tais como as guerras mundiais e a guerra do Viatnã, que serviu de cenário para sua adaptação cinematográfica mais conhecida.
Sobre a edição: O CLC caprichou no projeto gráfico, com destaque para as belas ilustrações- embora tenha feito falta um texto de apoio sobre a obra e o autor. A edição é bilingue, o que possibilita ao leitor ter acesso a obra original, -recomendo sua leitura, porque dessa forma possibilita uma experiência de leitura, mais intensa e impactante. Mas, a tradução também é muito boa, e, reproduz quase ao pé da letra a escrita de Conrad.