Julio.Cesar 25/02/2023
Uma das ansiedades que me consome todas as vezes que penso em Virginia Woolf, é a vontade desenfreada de ler tudo que ela escreveu como se não houvesse amanhã! Contudo, ao refletir sobre as duas leituras que tive de sua obra até o momento, a certeza de que as li no momento certo e na ocasião certa me liberta de qualquer necessidade ou obrigação de construir um repertório às pressas e ter experiências prematuras, o que sem dúvidas, torna minha relação com esta escritora cada vez mais profunda e significativa.
Meu primeiro contato com ?Um Teto Todo Seu? se deu por meio de uma indicação da Rita Von Hunty, na qual a exposição da premissa envolvendo a irmã de Shakespeare me fisgou sem nenhum esforço. Desde aquele momento, me vi encantado pelas possibilidades existentes naquele ensaio, e para minha surpresa, o que Virginia faz aqui supera em níveis estratosféricos tudo que eu esperava.
Já de início Virginia toma uma decisão bárbara! Para expor seus pensamentos tocantes à ficção, mulheres e o fazer literário, Virginia usa de uma narrativa ficcional para percorrer a realidade desprendida de qualquer tipo de amarra, desenvolvendo suas ideias a partir de seu alter-ego Mary Beton e traçando comentários pertinentes à condição feminina na sociedade europeia durante diversos períodos e contextos históricos.
A tese que incendeia o debate e nos conduz por todo o ensaio, parte do impacto do lugar da mulher e da condição social na produção literária, compreendendo a necessidade da emancipação financeira e um teto todo seu como condições básicas para que mulheres possam se dedicar à escrita nos mesmo termos que os homens o fazem.
O passeio pelas vivências de diferentes autoras e autores é mais que elucidativo no que compete à compreensão da disparidade atrelada ao gênero. Virginia analisa as condições e oportunidades que sempre estiveram configuradas em favor dos homens no campo da literatura e as coloca em contraste com a luta enfrentada por mulheres como Jane Austen, George Eliot e as Irmãs Brontë, cujas vidas foram permeadas pela constante necessidade de reivindicar espaço e reconhecimento e pela busca de superar a visão sexista e os valores misóginos que constituíam o pensamento comum daquela época.
Virginia também se debruça sobre a mulher enquanto ?segundo sexo?, a visão que os homens, em especial imbuídos de prestígio social e autoridade intelectual, tinham a respeito das mulheres escritoras. Dentro do meio intelectual, a necessidade de reduzir a produção feminina e negar espaço e possibilidades para que as mesmas pudessem desenvolver trabalhos de igual relevância aos masculinos, sempre funcionou como uma espécie de espelho distorcido, no qual os homens precisavam se enxergar de forma superior às mulheres para garantir autoestima, segurança e uma visão engrandecida de si mesmos, uma vez que qualquer abalo pífio ao ego masculino poderia ser suficiente para desestruturá-los e fazer com que reconhecessem de forma vergonhosa, a hipocrisia, fragilidade e tudo o que faziam questão de esconder dos outros e de si mesmos.
Questionando a disparidade das mulheres da ficção e da realidade, Virginia também coloca em evidência as grandes figuras femininas da literatura, de Madame Bovary à Anna Kariênina, mulheres complexas e rompedoras de paradigmas, escritas por homens que em nada se assemelhavam com as mulheres da realidade, cuja liberdade lhes era tolhida a ponto de que não pudessem ser elas mesmas e viver suas próprias vidas.
Através de seu fluxo de consciência, Virginia percorre inúmeros lugares em poucas páginas, atribuindo ao seu texto bastante densidade e exigindo atenção redobrada do leitor para que este não se perca durante a leitura. Contudo, revisitar trechos e momentos do ensaio é um exercício inevitável de certo modo, haja visto que há tanto sendo dito, que passar os olhos apenas uma vez em determinadas partes não é suficiente para as incógnitas e questões que atravessam o leitor e se alojam em nossa mente.
Como qualquer obra escrita há mais de noventa anos, os ensaios de Virginia Woolf não estão isentos dos julgamentos da posteridade e de descobertas que invalidando ou não ideias apresentadas ali, contribuem para complementar e qualificar o debate. Contudo, tais ressalvas e contextualizações não diminuem a potência e vivacidade das palavras de Virginia ou ignoram a atemporalidade desta obra e sua importância para o feminismo e para a literatura como um todo.