Lucas 12/07/2022
Surrealismo sanguinário: Por mais lindo que um cenário seja, a barbárie está à espreita
O escritor norte-americano Cormac McCarthy (1933-), numa conclusão atabalhoada e direta, redefiniu em Meridiano de Sangue (1985), sua obra-prima, os limites do realismo que um livro dessa vertente deve respeitar. Na verdade, como um leigo literário, eu diria que a obra é tão realista, ou melhor, escrita de uma forma tão real, que ultrapassa esse conceito "antirromântico": Meridiano de Sangue é surreal, sob qualquer ponto de vista a qual ele possa ser analisado.
Dessa conclusão, não é somente o caráter surreal que se sobressai, mas também a existência de inúmeros pontos de vista ou camadas que o livro apresenta. Meridiano de Sangue, pela forma com que foi estruturado, oferece uma miríade de perspectivas: há a histórica, que trata dos vários conflitos envolvendo norte-americanos, mexicanos, etnias indígenas e imigrantes nos atuais norte do México e sudoeste dos Estados Unidos na metade do século XIX; a filosófica, que trata de temas como livro-arbítrio, divindades, a (ine) existência de um poder absoluto que rege tudo e sabe de tudo e todos; a crueza e secura causada pela desolação desértica; a violência como uma figura onipresente, muito mais do que um simples reflexo da irracionalidade; e a narrativa/literária, que junta tudo isso através de um estilo sem precedentes.
Ficcionalmente falando, Meridiano de Sangue descreve a história do "kid", um garoto de origem não totalmente definível que, se não é o protagonista da narrativa, é o elemento responsável pelo direcionamento dos enfoques as quais McCarthy utiliza para desenvolver as perspectivas supracitadas. Praticamente um andarilho, os poucos traços da sua personalidade são claramente talhados pela violência e para a violência. É através dela que o kid, depois de um breve encontro no primeiro capítulo, se fixa como um integrante do bando de John Joel Glanton, núcleo principal do livro e que abriga o grosso (literalmente) dos personagens da obra.
Glanton, segundo algumas fontes, foi um personagem que realmente existiu, um homem que chegou a ser reconhecido pelo seu papel na "limpeza étnica" ocorrida no oeste e sul dos Estados Unidos em suas primeiras décadas como nação independente. O Glanton de McCarthy é concebido nesta mesma lógica: seu bando era formado por mercenários contratados por autoridades para exterminarem os nativos daquelas paragens, o que incluía não apenas índios em suas diversas etnias, mas também mexicanos, ainda lutando por espaços territoriais na fronteira com os norte-americanos e as quais tinham o azar de encontrarem-se com o grupo de mercenários em suas andanças.
Além do kid e de Glanton, o bando tinha vários outros indivíduos mencionados frequentemente, como o ex-padre Tobin, que é aquele a qual mais se aproxima de desenvolver uma amizade com o kid, o incerto Toadvine, o corrupto David Brown, o "Jackson Negro" e o "Jackson Branco", entre outros, muitos deles com os nomes mencionados uma ou duas vezes e sem maiores descrições pessoais. Mas nenhum desses integrantes é tão impactante e eternamente lembrado como o juiz Holden, homem corpulento e "sem nenhum pelo no corpo, nem mesmo cílios".
Engana-se o futuro leitor se a alcunha de "juiz" dada a este personagem o dignifica como um homem justo ou letrado: as linhas de McCarthy aos poucos vão explicando o sentido por trás desse rótulo, que faz do juiz, já que o seu nome próprio aparece poucas vezes, como o maior e mais inesquecível personagem de Meridiano de Sangue. Atuando inicialmente como uma espécie de "conselheiro" de Glanton, sua onipotência jamais encanta: ela assusta, convida à reflexão e personifica de forma racional toda a realidade árida e violenta na qual o bando desenvolvia seus "trabalhos". As suas teorias, a maior parte delas cruéis e desumanas, baseiam-se no ponto de vista de um lado da história: para ele, o mundo é dos fortes, só eles estão destinados a sobreviver e a pisar nos vencidos. Do alto da sua inteligência e eloquência, ele não parece interessar-se em formas de equalizar este quadro. Esse tipo de ideal, com raízes lógicas semelhantes àquilo que hoje se conhece como "meritocracia" não se importa com misticismo ou divindades (em pelo menos dois momentos da narrativa Holden deixa isso bem claro). Um de seus mantras ("Tudo que na criação existe sem meu conhecimento existe sem meu consentimento") traduz o que este personagem pensava acerca destes temas mais abstratos.
Mas diante disso o que faz do juiz esse personagem tão único? Afinal de contas, não apenas em suas teorias controversas, mas também certos comportamentos erráticos podem defini-lo como uma entidade satânica (há interpretações literárias que defendem isso). A resposta desta pergunta passa mais pela construção narrativa fabulosa de McCarthy em torno dele. Desde a primeira, espetacular e breve aparição de Holden no livro, logo nas primeiras páginas, uma certa aura transpassa nas entrelinhas. O juiz é aquele personagem que o leitor discordará, condenará, contestará e odiará, mas jamais deixará de ouvi-lo/lê-lo. Ele é algo ou alguém inevitável, capaz de, antes de despertar a repugnância, fazer o leitor refletir e, infelizmente, concordar com, pelo menos, parte de seus apontamentos.
Se for deixada de lado a discussão sobre seus valores morais discutíveis, o juiz é o personagem que mais bem aglutina o talento de construção narrativa de Cormac McCarthy, a qual é a característica mais forte para os que veem Meridiano de Sangue como o grande livro da literatura universal desde Cem Anos de Solidão (1967). Seu modus operandi é recorrente: maravilhosas descrições de locais (o deserto à noite ganhou uma concepção especial para mim graças a McCarthy), alguns diálogos diretos e outros memoráveis (McCarthy não usa aspas, dois pontos ou travessões), pouca utilização de vírgulas (o que reforça a impressão de ação e movimento), traços poéticos pintando quadros irreversíveis (como a morte)... É tudo lindamente descrito, quando subitamente as páginas começam a verter sangue: de repente, alguém tem a cabeça esmagada e/ou seus miolos pintam de vermelho a parede atrás de si; alguém é decapitado sem mais nem menos; ou o bando está caminhando num cenário lindo quando tropeça em carcaças humanas e/ou animais semidestruídas por abutres. O caos surge do belo, trazendo não asco ou repugnância ao leitor, mas uma perplexidade que poucas outras obras conseguem criar. É simplesmente inacreditável a lucidez com que McCarthy monta tudo isso, sem tornar cômicas estas passagens sangrentas (como o cineasta Quentin Tarantino faria) e sem as dramatizar em excesso, mantendo o tom narrativo desprovido de emoção. Eu diria que a escrita de McCarthy (traduzida para o português na edição da Editora Alfaguara em 2021 por Cássio de Arantes Leite) em Meridiano de Sangue é como a vida: ela tem momentos bons, ruins e belos, mas atrás de um arbusto ou de um balcão de mercearia a morte, seja ela simples ou brutal, pode aparecer. O autor conseguiu, com isso, tornar literária a aleatoriedade da vida, da qual todos nós compartilhamos.
Não somente nessa beleza e caos da narrativa que se percebe o talento de McCarthy: partindo da premissa simples inicial, do kid se juntando ao bando para "colherem" escalpos de índios (as quais eram levados às autoridades para comprovarem o trabalho de "limpeza"), o autor mexe sem nenhum pudor numa linha narrativa relativamente previsível. Aos poucos, os efeitos da violência desmedida e da aridez do deserto impactam nas motivações do bando de Glanton e também conduzem a um desfecho inimaginável e apocalíptico, pelo menos para mim. Apesar disso, acredito que, pessoalmente falando, o desfecho me foi erudito em excesso. As reflexões finais que são apresentadas são interessantes, mas elas conduzem a uma cena de fechamento que eu não consegui digerir plenamente. Não é uma questão de discordar do final ou tampouco não gostar dele, ou esperar algo maravilhoso depois de quase três centenas e meia de páginas de massacres e afins, mas acredito que faltou alguma coisa... Não sei o quê e provavelmente nunca vou conseguir saber.
Deixando a erudição de lado, o leitor leigo pode ficar com as conclusões mais óbvias. Meridiano de Sangue demonstra que a barbárie é o ponto de partida para o progresso: todas as nações desenvolvidas do globo possuem em seu âmago histórico muitos massacres e sangue derramado, notadamente de índios e "selvagens". E em nome desse desenvolvimento, o ser humano dito evoluído é capaz de cometer as maiores atrocidades imagináveis, desconstruindo quaisquer muros que separam eles dos animais propriamente ditos. Até por tratar desta "necessidade civilizatória", Meridiano de Sangue lembra um pouco o nosso Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909). As diferenças, obviamente, são incontáveis, principalmente de estilo, mas esta sede por amplificar a qualquer custo a civilização são forças motrizes de ambas as obras.
Estas e outras conclusões mais lúdicas e filosóficas são apresentadas através de uma escrita maravilhosa e despreocupada com padrões ou estômagos alheios. A obra-prima de Cormac McCarthy é um clássico absoluto, que vai enobrecer a contemporaneidade literária daqui a várias décadas, trazendo encanto, reflexão e aversão, muitas vezes numa mesma página.