kleris aqui, @amocadotexto no ig 17/04/2014não é NEM metade de OeP e foram uns bons 200 anos de espera que valeram a pena(Vc pode encontrar essa e diversas outras resenhas em dear-book.net)
É uma verdade quase universalmente reconhecida que, uma história antiga como Orgulho e Preconceito, em domínio público, permanecerá sendo lida, relida e remexida ao longo dos anos.
Não, não é assim que se inicia a narrativa de Jo, mas posso afirmar que, tal como a Jane Austen, ela abre a história colocando os pontos direto nos Is, nos revelando sobre qual realidade tratará: a vida das presenças espectrais que servem à família Bennet. Jo lhes deu nome, personalidade e história.
Tomo aqui que vocês já conhecem o enredo em Orgulho e Preconceito (OeP). Para que certos acontecimentos tenham maior valor, a história exige uma carga de referências sobre o original; porém, em nada impede o entendimento geral. Na maior parte essas referências funcionam como um guia.
Bom, de volta à residência da família Bennet, dessa vez passeamos por cômodos que Jane Austen pouco se deteve. É na cozinha, no sótão, nos estábulos e no terreno da família que vemos Sarah e Polly, duas órfãs, trabalhando duramente ao lado do mordomo sr. Hill, e sua esposa sra. Hill, a cozinheira/governanta.
A partir de um narrador na terceira pessoa, semelhante à Austen, conhecemos os cansativos serviços diários e as perspectivas de vida desse pequeno grupo, mais precisamente as de Sarah, jovem criada. Ela é uma moça que guarda opiniões, que não se contenta com o emprego, sofre de desgaste e tem sonhos de uma vida melhor. Duas novas mãos serviçais eram do que a casa precisava.
A chegada de James Smith, o novo lacaio, em nada muito substancial muda a rotina. Ele era uma presença, claro, diminuía o trabalho duro das criadas, veio muito bem a calhar, mas aos olhos desconfiados de Sarah, ele não passava disso. Os outros serviçais, por outro lado, eram bem agradecidos e acomodados em seus postos. Polly é uma menina doce e inocente, sr. Hill é um velho bondoso e trabalhador, e sra. Hill é a mãezona que comanda as coisas.
Logo a casa começa se movimentar, pois Bingley é o novo vizinho. Acho que é inevitável por essas horas ter o filme de 1995 ou 2005 (para quem assistiu) passando sob nossas vistas. É enquanto rola o início do romance da srta. Jane com Bingley que Sarah conhece o lacaio Ptolemy (que prefere ser chamado de Tol), um homem vivido e com um status melhor por trabalhar para uma família importante. Isso dá alguma esperança de mudança real de vida a Sarah. Só que uma mudança dessas já havia acontecido sem ela notar.
>"Sarah não podia imaginar que, ao secar as xícaras que ela lavara, ele pretendia chamar a atenção dela de alguma maneira. As unhas dele, ela notou, pareciam luas pálidas e chamou-lhe a atenção o movimento de seus músculos no antebraço enquanto ele passava o pano no interior das xícaras , mas ele permanecia tão silencioso como uma pedra. Depois ela se lembrou [...] de Tol [...] e de como ele a notava, de como ele lhe dirigia todas aquelas atenções [...]. James trabalhava com deliberada lentidão, enxugando cada xícara e copo até rangerem, mantendo-se perto dela, apreciando sua expressão de enfado, seu silêncio obstinado. Aquela pertinácia, aquela carranca o encantavam de uma forma que ele não entendia claramente. [...] Ela era mais dura do que ele imaginava. Não queria nada dele. Ela o afastava de si como uma mosca. Ele se deliciava com isso."<
Conforme a história original foi progredindo, que os dias se faziam de esforços, reconheci um orgulho e preconceito que não poderia imaginar. É incrível como as coisas acontecem debaixo do nosso nariz. Nesse sentido, Jo seguiu a linha do romantismo e realismo de Austen, marcando a narrativa não com frases de efeito, mas cenas, muitas cenas detalhadas e longas (como o trecho anterior), para mostrar o ponto a ponto de como as coisas se davam, como as personagens se comportavam e o que realmente tinham em seus pensamentos. Isso dá uma graça maior às conveniências --e nos faz colecionar um monte delas--.
>O pacote. O que tem dentro dele?
Rosetas de sapatos, ela respondeu.
Rosetas de sapatos?
Rosetas de sapatos. Rosetas para sapatos.
Não entendi. Ela se impacientou.
Os sapatos de baile têm rosetas, que são presas neles.
Para que se faz isso?
Para que fiquem bonitos.
Ele ergueu os olhos para o céu.
O que foi?
Nada. É que, se a encarregarem de novo para uma incumbência tola como essa, debaixo de uma chuva tola como essa, ele disse, me procure, me ache, que eu irei no seu lugar.
Ela pôs as mãos aos quadris, os olhos chispando.
E por que você deve determinar o que eu posso e não posso fazer? Ele ergueu as palmas das mãos. Eu não quis...
E se eu quiser ir? E se para mim for um prazer ir? E se eu não quiser que você meta o bedelho onde não é chamado?<
O livro conta com três partes e um finis. Até a segunda parte as coisas se movem em função do mundo de Orgulho e Preconceito; é na terceira que vemos a real imaginação de Baker. A maneira como ela entrelaçou isso à trama de Austen me impressionou bastante, vide as entradas de capítulo, com trechos reais da obra (semelhante às epígrafes em Jane Austen: A Vampira, de Michael T. Ford).
Houve uns momentos em que a narrativa se arrastou, mas gosto de pensar que era por ansiedade de chegar em alguns finalmentes (rs). Jo foi malandra de me deixar com o coração na mão diversas vezes, me emocionou, me fez rir, torcer --shippar--, e me chocou a ponto de me questionar seriamente sobre alguns personagens e comportamentos. Para o que Austen nos deu com uma visão romântica, Baker nos traz uma visão realista e vice-versa.
De todas as adaptações que já vi sobre OeP, esta certamente me chacoalhou! Já vi diversos filmes, séries e livros e nenhum até então consigo equiparar. Jo basicamente estendeu o quadro de vivência de Longbourn, região da casa modesta dos Bennet. Digo isso entre aspas por todos sabermos que a família não era nada abastada, mas viviam confortavelmente, o que nesse livro, sob a vista dos criados, a gente entende de outro jeito.
>"Sarah fez apenas um leve gesto de assentimento com a cabeça, cerrou os lábios e voltou a atenção para a mesa, oferecendo o prato de presunto frio: tudo seria esclarecido no devido tempo, não lhe cabia indagar. Nunca lhe cabia falar, a não ser quando lhe falavam primeiro. Era melhor ser surda como uma porta para tais conversas e parecer incapaz de formar uma opinião sobre elas."<
Acho que a capa ilustra bem isso (o trecho). Apesar de o livro abarcar várias histórias, é em Sarah em que se centra. Gostei bastante do título também: o original é Longbourn, e a edição daqui acrescentou as sombras, o que concorda em dar mais vida a esses personagens. Só não concordo talvez com uma coisa (rs): na contracapa, há uma informação que diz que Orgulho e Preconceito é só metade da história. Arrisco afirmar que não é NEM metade e que foram uns bons 200 anos de espera que valeram a pena. Assim como guardei Lizzie e Darcy no coração, guardarei Sarah e James. E Polly, sr. Hill e sra. Hill!
Recomendo àqueles que já leram (ou conhecem a história) OeP alguma vez, independente de terem gostado. Ou mesmo se gostam da série Downtown Abbey! Vocês PRECISAM ver o que Jane não pôde, àquela época, nos contar, e não falo só pelos criados, mas também um imaginário sobre as Bennet casadas. Sugiro, no entanto, que mantenham um aplicativo de dicionário perto (rs). No começo tem umas palavrinhas que podem parar sua leitura, mas com o tempo vocês levam na boa.
Acho que nem preciso dizer que AMEI, né?
E já quero saber de outros trabalhos da escritora.
site:
http://www.dear-book.net/2014/04/resenha-as-sombras-de-longbourn-jo-baker.html