Anna Carolina 31/10/2015
Maj Sjöwall e Per Wahlöö são tidos como os precursores dos romances policiais escandinavos modernos. Sua série de dez livros, protagonizada pelo detetive Martin Beck e intitulada “A História de Um Crime” (acharão mais resultados se buscarem “The Story of a Crime”), é mundialmente renomada, e foi a responsável por consagrar o casal de jornalistas. Escrita em dez anos, aproveitando o horário em que seus filhos dormiam, dizem alguns, a série tem início com “Roseanna”, um suspense que envolve o estupro de uma jovem turista americana em circunstâncias que deixaram pouquíssimas evidências.
Confesso que esse foi um dos poucos livros que “comprei por comprar”. Estava na livraria sem saber o que procurava, numa dessas visitas aleatórias durante as quais esperamos alguma revelação divina, ou, no mínimo, uma capa mais interessante. “Roseanna” estava ali, junto de uma fileira de Sidneys Sheldons. Porque eu tinha acabado de ver uma série policial norte-americana inspirada numa série policial sueca, pensei que o livro teria mais ou menos a mesma qualidade (que não é lá muito alta, convenhamos, mas divertiu-me), especialmente por tratarem, julgando pela sinopse, da mesma coisa.
Comprei “Roseanna” e um do Rubem Fonseca. Graças a Deus eu comprei o do Rubem Fonseca.
Adianto que a resenha não se baseia tanto nos aspectos técnicos da narrativa de Sjöwall e Wajhlöö, muito menos do gênero, pois conheço muito pouco dele para atestar qualquer coisa. Sei, apenas, o que busco em um livro como esse: protagonista cativante, um mistério que me prenda pelas 255 páginas, um suspeito crível, um caso bem elaborado e um background minimamente sofisticado para que eu não me sinta “lendo um livro por ler”. Eu não gosto de “ler por ler”. Eu costumo me interessar por narrativas com personalidade, isto é, que não pareçam gratuitas, feitas para entreter e só. O entretenimento é fundamental, sim, mas não deve ser exclusivo.
Talvez o erro seja meu. O gênero, segundo meu conhecimento restrito, nasceu para isso. Às vezes – no caso de Dashiell Hammett, por exemplo – somos agraciados com uma crítica social, uma profundidade maior, um background mais político, no entanto o objetivo não é este, essencialmente. Ou isso, ou um diagnóstico pior: estou alienada pelas produções hollywoodianas e ignorei a perspicácia dos suecos. Estabelecendo como parâmetro de “boa história de investigação” os grandes “Janela Indiscreta” (Hitchcock), “Millenium: The Girl With The Dragon Tattoo” (Fincher, pois não me agradou a versão sueca) e “The Killing” (a série em questão, produzida pela AMC e pela Netflix), nota-se que meu repertório é exclusivamente cinematográfico.
O que li de suspense investigativo foi o conto tido como o abre-alas desse tipo de narrativa, do Edgar Allan Poe, “O Homem na Multidão”. Magnífico, que conste. Reflexivo – eis a palavra-chave!
“Roseanna” não é, de modo algum, reflexivo. Martin Beck, o detetive perito em interrogatórios, que se encarrega do caso com o auxílio de outros oficiais cuja importância é tal que se eu mencioná-los, ou não, não fará diferença; letárgico, ensimesmado, mas não o bastante para que Sjöwall e Wajhlöö nos permitam entrar em sua cabeça, Martin passa a maior parte da história decepcionado com o não-andamento das investigações. Nisso, descobrimos que seu casamento não vai bem, que mal vê seus filhos e que busca, no trabalho, um escape para sua vida enfadonha.
Considerando esse aspecto, Sjöwall e Wajhlöö acertam ao isolar-nos do restante da vida de Martin, concentrando a história nos momentos em que ele ou está trabalhando, ou pensando no trabalho. Não nos comovem, entretanto, a ponto de gerar alguma empatia por esse lado da vida do personagem, e se sua família de repente sumisse da história (fosse brutalmente assassinada, se mudasse para a Sibéria), não nos afetaria (ou a Martin, suponho) em nada. Imagino que haja um propósito psicológico – afastar-nos deles como Martin se afastou -, mas para quê? De que modo isso afeta Martin/o leitor? Não fica claro.
Além disso, muito se discorre sobre o talento de Martin Beck para interrogar suspeitos, e quando a oportunidade de vê-lo em ação nos é dada, é decepcionante. Não há nada de excepcional ali – mesmo no final, posto de modo a explorar, ao máximo, sua dialética. Um leitor menos familiarizado com psicologia, técnicas manipulativas, ou mesmo com o gênero, em si, talvez – talvez – veja um quê de interessante, embora turvo, no modo como Martin lida com seus suspeitos. Os que já tenham conhecimento mínimo desse espectro tentarão, em vão, identificar suas cartadas, o que é frustrante, pois não se justifica todo o auê em torno disso.
Quando finalmente encontram um rumo, os detetives envolvidos com Roseanna desenrolam, agilmente, o fio que os guiará até o responsável, como se tudo não passasse de uma mera “questão de tempo”, e não de olhar para o lado errado, ou para o lado certo, mas sem a atenção necessária. É graças aos Estados Unidos, terra natal de Roseanna, que, numa operação conjunta, Martin e seus colegas esclarecem a maioria dos detalhes, e após muitas páginas de “nós temos que resolver isso”, “mas como?”, “vamos esperar”, “ok”, “vamos falar com os EUA”, “vamos ver no que isso dá”, eles dão início à investigação propriamente dita.
Daí em diante, muitos são entrevistados, pouco se é dito sobre eles, de modo que o leitor não mergulha, em momento algum, no caso. Algo comum às histórias do tipo é o destaque às manias e características minimamente excêntricas, se assim forem, das pessoas com as quais os detetives se envolvem. Aqui ele é escasso. Sjöwall e Wajhlöö são sempre distantes, expondo apenas o quadro, e não nos colocando dentro dele. Há quem goste desse estilo, esta é uma crítica bem subjetiva, pois. Falei algo semelhante de Patricia Highsmith, sobre a narrativa focada no fundamental, sem “perdas de tempo”, mas Highsmith nos manteve dentro da cabeça de sua personagem, apesar disso, e nos convidou a ver o mundo como ela via, gerando intimidade com o leitor. Martin Beck é uma figura afastada, dentro e fora do livro; pouco cativante.
Já o mistério, em si, prende o bastante para te levar até sua conclusão, sobre a qual não me delongarei para evitar spoilers. Em certo momento, é possível reconhecer a influência de “O Homem na Multidão” sobre uma passagem, em particular, que falhou, para mim, por não possuir nem meio por cento do caráter divagativo do conto.
Sobre a obviedade da história e do responsável pelo crime, trata-se mais de estar lendo, em 2015, um livro escrito em 1965 e que influenciou toda a geração que eu consumi primeiro, de modo que fica a impressão errada (esse livro ser mais do mesmo, quando, na verdade, ele é o ponto de referência, ao qual cheguei depois).
Recomendo-o para quem curte narrativas ágeis, com poucas firulas, e para quem tem mais interesse em conhecer a literatura sueca que originou, por exemplo, “Millenium”, de Stieg Larsson. Mas entre “Roseanna” e “O Caso Morel”, ambos adquiridos por impulso, o segundo, do Rubem Fonseca, me atraiu bem mais pro gênero. Faltam ainda os outro nove volumes da série, que não sei se lerei; talvez leia mais um, para me certificar de que “Roseanna” não foi “azar de iniciante”.
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