Antonio Luiz 15/03/2010
Um mangá iluminado e cheio de graça
O que aconteceria com a história de Jesus se fosse contada em quadrinhos como os de Mickey e Pernalonga, com personagens como estes a desempenhar na história sagrada um papel central, a ponto de mostrar ao próprio Cristo as realidades da vida e lhe inspirar sua missão?
Provavelmente, seria uma barbaridade estética e soaria como blasfêmia para qualquer cristão que se preze. Já no Oriente, uma obra análoga pode ser uma obra-prima do gênero e uma expressão de sincera espiritualidade budista. Isto se deve em parte à ausência da rigidez das religiões mosaicas, mas também às peculiaridades do quadrinho japonês.
Sem se prender aos estereótipos cômicos e super-heróicos dos quadrinhos ocidentais tradicionais, os personagens de mangás costumam se desenvolver ao longo de uma história com começo, meio e fim.
Enfrentam as próprias fraquezas e ambigüidades mais do que combatem vilões – que, igualmente complexos e ambivalentes, também evoluem e não raro se convertem em amigos e aliados ao longo da trama.
Longas narrativas percorrem e descrevem toda a gama das emoções e comportamentos humanos por meio de recursos expressivos emprestados ao cinema ocidental ou herdados das tradições teatrais e iconográficas japonesas. Sérios dramas sociais e morais e desenlaces trágicos alternam-se com cenas de melodrama, sentimentalismo meloso, sensualidade desinibida e humor grotesco.
Esse ecletismo é tão típico dos japoneses quanto dos mitos gregos, nórdicos e indígenas e das gestas de cavalaria e romances picarescos europeus, nos quais igualmente passeiam de mãos dadas o sublime e o ridículo, ainda não separados pelas distinções classicistas entre “estilo alto” e “estilo baixo”.
Isso não chocaria Aristófanes ou o Terêncio do “sou humano e nada do que é humano me é estranho”, mas desconcerta o leitor acostumado com as convenções dos quadrinhos ocidentais, tanto quanto ter de inverter a ordem ocidental de leitura dos quadrinhos e folhear as páginas “de trás para a frente” para seguir a opção da editora de respeitar a composição visual do original. Seria uma pena se isso o desencorajasse de conhecer o premiado "Buda" de Osamu Tezuka, editada pela Conrad em 14 volumes.
A biografia de Tezuka foi contada pelo seu próprio estúdio em mangá de quatro volumes editado pela Conrad entre 2003 e 2004. Nascido em 1928, inventou a longa história em quadrinhos tipicamente japonesa entre 1947 e 1948, com uma adaptação de "A Ilha do Tesouro" de Stevenson e depois com "Dr. Marte" e "O Monstro do Mundo Subterrâneo", dois trabalhos de ficção científica para as crianças que haviam sobrevivido aos horrores da II Guerra Mundial.
Sem dispor dos computadores e softwares usados por desenhistas e animadores mais recentes, Tezuka compensou técnicas simples de desenho com enredos ricos e sedutores, de forma a poder criar e entregar a tempo séries muito mais longas. Trocou a tradicional animação quadro-a-quadro pela animação parcial que tornou financeiramente possíveis os animes seriados japoneses dos anos 60.
A arte do estúdio Tezuka é conhecida dos brasileiros. Muitos adultos de hoje foram, nos 60, 70 ou 80, fãs de desenhos como "Kimba, o Leão Branco" (inspirado em "Bambi" e imitado, por sua vez, por "O Rei Leão" da Disney), "A Princesa e o Cavaleiro", "Visitantes do Espaço" (ou "Os Três Espaciais"), o "Menino Biônico" e "Dom Drácula". Seus filhos hoje acompanham na Cartoon Networks uma nova versão de sua animação pioneira de 1963, Astro Boy, personagem que foi o maior sucesso do estúdio e cujo cabelo espetado o representa no Japão tanto quanto as orelhas de Mickey simbolizam a Disney.
Mas seus mangás continuavam relativamente pouco conhecidos por aqui, salvo por "A Princesa e o Cavaleiro", editada em oito partes, em 2002, pela JBC. Trata-se de uma obra infantil de 1953, relativamente breve e voltada para meninas (embora também tenha agradado os garotos, ao menos no Brasil).
O épico "Buda", dos anos 70 e 80, é bem mais realista, maduro e meditado. Não se engane com a profusão de bichinhos meigos e a cândida simplicidade do traço inspirado nos desenhos Disney dos anos 30 e 40, cuja suavidade seduziu as crianças japonesas nos anos difíceis do pós-guerra.
A violência e sensualidade da Índia antiga estão presentes, tanto quanto a espiritualidade do budismo nascente e os motivos dos mangás de Tezuka – meninos de coração puro e poderes misteriosos, garotas corajosas e apaixonadas, uma lírica fraternidade entre homens e animais e a aceitação serena da realidade e inevitabilidade do sofrimento e da morte.
Recomendar a obra para uma criança é uma decisão tão difícil quanto a de deixá-la ler o "Velho Testamento". O olhar do autor tem muito de infantil, mas não tenta evitar os píncaros e abismos do mundo adulto. Seu conceito de pureza certamente não é o do puritanismo ocidental.
Após um breve prefácio, a seqüência de abertura dá o tom lírico e trágico da obra: um urso, uma raposa e um coelhinho – que bem poderiam ter saído dos primeiros desenhos Disney – unem-se para salvar um asceta que desmaiou de fome. O urso traz peixes, a raposa frutas e o coelhinho, sem conseguir encontrar outro alimento para o monge, pede-lhe que acenda uma fogueira e lança a si próprio.
Sidarta Gautama, o tema da série, não chega a dar as caras no primeiro volume, dedicado a mostrar o cenário no qual viria a nascer: uma Índia rigidamente estratificada e em permanente conflito entre seus reinos, nos quais rajás e generais esmagam de forma casual e indiferente as vidas de súditos humildes.
A luta de classes – perdão, castas – e o desprezo dos brâmanes e guerreiros para com as castas inferiores são descritos de forma hilária e dramática, mas também suficientemente impiedosa e precisa para satisfazer o sociólogo e o historiador mais exigentes – salvo, talvez, por anacronismos intencionais e com efeito tão cômico quanto trágico, na medida em que remetem a realidades bem familiares.
Essa parte da saga gira em torno de dois personagens tipicamente tezukianos: o menino pária Tahta, um ladrãozinho dotado de um estranho poder e de um coração de ouro e seu amigo sudra (escravo) Chapra, um garoto ambicioso que tenta driblar o sistema de castas fazendo-se adotar por um grande general.
No segundo volume, enquanto Chapra fracassa tragicamente nasce o futuro Buda, cuja história, no terceiro volume se enreda com a de um Tahta já adulto e da ladra Mighelle. A esses dois personagens de Tezuka cabe a grandiosa missão de mostrar o mundo real ao jovem e mimado príncipe dos Sakyas – pelo qual Mighelle futilmente se apaixona, insolência pela qual o rei a obriga a pagar um alto preço, apesar das súplicas do jovem Sidarta. No volume seguinte, Sidarta atinge a maturidade e inicia a busca pela iluminação, na qual seus caminhos voltarão a se cruzar, para o bem ou para o mal, com os de Tahta e Mighelle.
Para o ocidental alheio à história sagrada contada às crianças japonesas, não será fácil desenredar a fantasia de Tezuka da autêntica tradição budista. Vale a pena, mesmo assim, mergulhar na aventura, tanto mais fiel ao espírito budista de desapego ao material e ao efêmero quanto mais se diverte a brincar com suas próprias raízes legendárias.