Paulo 26/12/2023
Este é um quarto volume repleto de mudanças no grupo que se encontra no presídio. Tudo explode em um caos absoluto em que os maiores inimigos são os próprios humanos e nem tanto os mortos-vivos. Dexter decide expulsar o grupo de Rick à força do presídio e aponta sua espingarda para ele e Lori. Os outros presidiários estão em um limbo decidindo que lado apoiar e quando tudo parece apontar para um confronto direto entre Rick e Dexter, os zumbis que estavam trancados no bloco A irrompem pelos portões (alguém esqueceu um dos portões semiaberto) e todos precisam lutar por suas vidas. Entre tiros trocados com uma horda de zumbis que parece não ter fim, Rick se aproveita da confusão e dá um tiro na cabeça de Dexter sem que os outros percebessem. Apenas Tyrone observa a ação do companheiro. É óbvio que mesmo o acontecimento mais sutil uma hora vai estourar para o resto do grupo e a liderança de Rick passa a ser questionada por todos; sem falar em sua sanidade mental. E uma estranha mulher portando uma katana e dois zumbis de estimação chamada Michonne é abrigada pelo grupo. Mas, depois do que aconteceu com Dexter, o que esperar dela?
A arte de Charlie Adlard está pendendo cada vez mais para uma abordagem cinematográfica da história. Por isso que foi tão fácil adaptar as primeiras temporadas da série de TV usando apenas o material original como inspiração. Os cortes de cena e os ângulos que Adlard faz são bem precisos. Quando estamos diante de uma cena de ação, tudo acontece de forma frenética, os quadros são quase instantâneos e é como se as páginas voassem enquanto estamos lendo. Vinte páginas podem passar em menos de um minuto se não pararmos para apreciar os detalhes. O emprego do preto e branco também é muito eficiente principalmente quando o artista entrega tons e matizes oferecendo uma gama maior de cores. Pensem: aqui só temos preto e branco. Porém, ao variar na intensidade do preto é possível introduzir um acinzentado, um grafite, um escuro total. Não é algo simples e esse tipo de abordagem pode ser muito vista em artistas clássicos da EC Comics como Richard Corben ou Barry Windsor-Smith. Não digo que o Adlard está nesse nível, mas certamente ele está nessa escola de uso do PB. Vou guardar alguns pontos que gostaria de comentar sobre cenas mais paradas para a próxima edição, mas prestem atenção também em como Adlard consegue reproduzir bem a dramaticidade de uma situação ao inserir uma emoção estranha ou um gesto fora do lugar como na cena em que a Carol flerta com o Rick.
O roteiro está bem rico nessa edição. Kirkman vai lidar com a própria coesão do grupo que até então era mantida pelo Rick. Mas, o contexto que ele cria para os personagens e o indivíduo que parece naturalmente talhado para o negócio, por ser um xerife, se torna o maior vilão da noite para o dia. Pelo menos na linha de pensamento do resto do grupo. Vamos debater as visões opostas de Tyrone e Rick já, já. O que vale dizer é que o roteiro espertamente vai comendo pelas beiradas como um ratinho estragando um queijo aos poucos até que todo o interior está podre. Quando a estrutura desaba, já é tarde demais porque já não havia mais salvação. A partir daí é um efeito dominó com vários acontecimentos se sucedendo simultaneamente e provoca uma instabilidade sem volta. A inserção da Michonne foi esperta porque as pessoas já estavam apreensivas por causa do ocorrido com Dexter. Um grupo que estava disposto a confiar no começo, agora não está mais. Vejam como o roteiro faz essa virada de 180º em um mesmo volume. O desenvolvimento de personagens do Kirkman aqui está impecável e não tenho nada a repreender.
Era nítido que Rick vinha perdendo as estribeiras desde que ele foi traído por seu melhor amigo. A confiança e o otimismo dele foram desabando a cada novo revés que ele e seu grupo tinham. É então que ele começa a reforçar seu poder de liderança para que tudo siga dentro de linhas precisas de comando. E essa é uma reação natural vinda daqueles que possuem uma formação militar. Não é possível manter civis em uma disciplina rígida. No começo, Rick imaginava que seria possível compensar isso através do trabalho de equipe. Só que esse mundo de zumbis lhe apresenta sempre situações imprevisíveis e imponderáveis. Ao se tornar mais e mais rude, ele vai se tornando aquilo que o grupo precisa, mas não o que o grupo quer. Num ambiente selvagem, Rick entra em um modo de sobrevivência, onde o bem do grupo precisa ser alcançado a qualquer custo. E se o grupo tiver algum elemento disruptivo, ele precisa ser capaz de lidar com isso e eliminar o problema. Essa violência desenfreada passa a ser percebida pelos outros membros do grupo a partir de leves mudanças no comportamento, mas os seus companheiros entendem como um cansaço. Mas, quando Rick dá um tiro na cabeça de Dexter ou decide tomar as dores de Carol, é aí que a volatilidade realmente aparece e mostra o perigo da situação.
Já Tyrone tenta manter o equilíbrio. Como alguém que já passou por vários problemas em sua vida, principalmente devido à sua etnia e condição social, ele entende que é preciso manter algum tipo de compasso moral para que não caiamos em uma anarquia absoluta. A ação de Rick foi chocante porque ilustrou a ele que mesmo um homem correto está passível de ser destruído por esse mundo. As visões de Rick e Tyrone se chocam nesse sentido. Para Rick, ele deve ter esse fardo nas costas e sobreviver significar encarar esse ambiente novo com um olhar selvagem e destemido, matando e pilhando se necessário. Rick não vê apoio vindo de lugar nenhum. Eles precisam construir seus próprios destinos. Já Tyrone acredita que as regras sociais precisam ser mantidas para não nos tornarmos animais. É aí que Rick diz uma frase que se torna clássica para a série.
Vou passar rapidamente por duas situações amorosas desse volume para ilustrar como um mesmo sentimento pode ter dois significados distintos. Digo do amor como duas pessoas se confortando uma na outra em situações difíceis. Maggie e Glenn acabam se descobrindo um no outro diante das dificuldades e principalmente após tudo o que aconteceu na fazendo do Hershel. Para Maggie era uma questão mais sexual e química que ela curtiu em um parceiro disposto a lhe dar prazer. Já Glenn de fato desenvolveu sentimentos afetivos por ela, e o sexo era um algo mais que vinha naturalmente com a relação. Quando o que os dois queriam se chocou, a reação inicial de Maggie foi de afastar Glenn no começo. Mas, logo depois com tudo o que aconteceu na prisão, Maggie foi percebendo que também passou a desenvolver sentimentos pelo garoto. Ele lhe dava aquilo que ela precisava: um senso de lar e segurança. Quando eles foram capazes de expor um ao outro o que eles sentiam através de palavras e do encontro de seus corpos é que o estalo aconteceu. O conforto foi positivo para o casal que conseguiu criar um vínculo mesmo nessa situação insana.
Por outro lado, Tyrone estava vivendo um caso com Carol já há um tempinho e os dois estavam com uma relação até bacana. Carol conseguiu superar suas perdas e encontrar em Tyrone alguém que lhe desse carinho e afeto. Só que depois do que aconteceu com a morte de Dexter, a chegada de Michonne e a briga com Rick, Tyrone ficou meio perdido sem saber como reagir. Michonne entra como o elemento surpresa na história. Ao perceber um momento de fragilidade dele, ela se insinua a ele e consegue arrancar uma relação íntima e se torna um caso totalmente sexual. Ela oferece a Tyrone um conforto quase animal em um momento de fragilidade. Tyrone não resiste, primeiro porque ele quer que alguém lhe dê esse conforto naquele momento (e Carol não estava ali naquele instante) e porque Michonne é uma mulher sensual. Carol vê tudo acontecer e isso bagunça totalmente a relação entre eles. Ou seja, nesse sentido o conforto amoroso foi negativo porque partiu de uma atitude impensada e impulsiva de Tyrone. Podemos argumentar se as acusações de Rick foram exageradas ou não, mas a atitude do Tyrone foi totalmente errada e não levou em consideração os sentimentos de sua parceira naquele momento.
É uma ótima edição da série repleta de situações e reflexões feitas por Kirkman que remete ao nosso cotidiano. Várias das coisas que acontecem nessa edição podem ser vistas em diferentes graus em nossa sociedade. As visões contrastantes de mundo (a necessidade ou não de regras sociais que regulem nossas vidas), as dificuldades na vida de alguém assolado por dúvidas em sua capacidade de liderar, a traição como um ato impensado (ou não tão impensado assim). A arte de Adlard também está bem legal e mostra um pouco de suas inspirações. Enfim, ótima continuidade dos eventos da edição passada.
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