spoiler visualizarPimenta 24/11/2012
Pornografia
Literatura ministrada em sala de aula, na minha época, resumia-se ao contexto histórico, à biografia do autor, a um rastro de teoria e a um excerto mínimo de sua obra, nem sempre lido ou comentado no momento da aula. Literatura estava tão ligada aos aspectos cronológicos, que talvez pudesse nem existir, poderia ser com facilidade incorporada à disciplina História.
Os autores eram apenas os seletíssimos, considerados expoentes não da Literatura, mas da História do Brasil. Normalmente, esses autores tinham uma vida trágica (coisa de artista), impossibilitados de outro afazer que não fosse uma obra-prima, ou, então, mesmo fazendo uma obra de reconhecido valor, tinham uma vida boa e impecável, muitas vezes participando ativamente da sociedade como cidadãos exemplares. Os seus poucos textos nos livros didáticos eram os consagrados desde antes de meus avós; modelos, dizia-se, a serem seguidos para se escrever bem, de acordo com a norma culta. Mais ou menos isso, embora todos saibamos que um dos grandes lances literários seja o desvio. O desvio, a contradição, a ruptura, a busca por uma visão diferenciada de mundo, assim a literatura vive, assim é a literatura viva.
Aspecto que, para mim, incomodava muito, nos textos que lia, era a ausência de sexo. Sim, sexo. Não estou afirmando que a literatura dos livros didáticos fosse de todo assexuada. Havia passagens, poucas, bem poucas, tanto em poesia quanto em prosa, que com olhar bastante atento, eu conseguia vislumbrar. Mas era tudo sempre carregado de figuração, havia sempre a maldita de uma metáfora a ser decifrada antes de eu ser estimulado lá, embaixo do umbigo.
Foda-se a minha faixa etária! Fodam-se os objetivos pedagógicos da escola! Eu queria sexo. Queria pelo menos imaginar (com imagens explícitas) o ato em si e todos os arredores do ato. Pensava, não haveria maior estímulo à leitura do que colocar bastante sexo nas páginas dos livros. Ainda na adolescência, fora da escola, por meios “criminosos”, fui apresentado à literatura pornográfica. Numa rodinha de “maus elementos” estavam lendo algumas páginas do livro “Glosa glosarum”, uma coletânea de glosas fesceninas coletadas por Celso da Silveira, jornalista e poeta potiguar. Escutava aquelas libertinagens tão sinceras e bem humoradas, e dizia comigo, “Até que enfim...”
Tive a felicidade de ter um caráter bem liberal em relação à sexualidade, o que sempre me permitiu o acesso à pouca literatura pornográfica que existia. Recentemente, tentei ler mais pornografia, porque estava escrevendo alguns sonetos libertinos e desejava estar envolvido no tema. Só tive a constatação, literatura pornográfica em língua portuguesa continua escassa. Vejam bem, estou enfatizando a literatura, não estou falando de relatos de práticas sexuais. Literatura é arte, e relatos de práticas sexuais, embora tenham o seu público leitor e seus nobres objetivos imediatistas, não esbarram em literatura nem em arte.
Uma das poucas opções para quem gosta da coisa e de literatura, mais especificamente de poesia, é a “Antologia pornográfica”, organizada por Alexei Bueno. Ali é possível nadar de braçada na boa putaria. Para os iniciantes, é bom descobrir que alguns dos seletos autores do passado também adoravam uma sacanagenzinha. Há poemas bem cabeludos de Bernardo Guimarães, autor do romance “A escrava Isaura”, e de Guerra Junqueiro, senhor de grave eloquência no trato linguístico, por exemplo. Entre brasileiros e portugueses, entre célebres e desconhecidos, entre mortos e vivos, são no total 20 autores a revelar “o que o povo gosta”.
Por serem literários, embora haja a nomeação das partes conforme o nosso vasto vocabulário chulo nos ensina, os textos não se eximem dos artifícios estéticos na composição de uma linguagem elaborada. Quero dizer que o que está em relevância ainda é a literatura. Poemas pornográficos só podem ser escritos por poetas. Os poetas do desvio, da contradição, da ruptura, da busca por uma visão diferenciada de mundo, enfim, os poetas da literatura humana, da literatura que lateja forte quando o coração está bombando, digamos, apaixonado.
Conforme havia afirmado, textos pornográficos de boa qualidade estética em língua portuguesa são raríssimos e isso torna a “Antologia pornográfica” fonte de prazer para todos que saibam ler com olhos livres e, para os aficionados, referência bibliográfica das mais importantes. Bem diz o próprio organizador, ele mesmo excelente poeta: “Com este tesouro de imoralidades, este sacrário de abominações, esta comédia de todos os preconceitos e de todos os desrespeitos, esperamos oferecer ao leitor uma salutar possibilidade de fuga da prisão infernal do politicamente correto em que nos encontramos, sob os auspícios dos mais irrepreensíveis monstros do nosso tempo.”
Fugindo, pois, ao politicamente correto, acho que nós, leitores, temos o direito a uma literatura que saiba trepar e que sempre se utilize de seus saberes. Concluindo, pornografia em arte não é pornografia, é arte.
(Texto publicado originalmente na Semana Online #41)