Ladyce 08/02/2024
A primeira vez que vi uma longa lista de nomes de mortos foi em visita ao Monumento aos Soldados Mortos na Segunda Guerra Mundial, aqui no Rio de Janeiro, no Aterro do Flamengo. Eu era pequena. Mão na mão de papai, percorri com ele o comprimento das tumbas gravadas, com nomes de pessoas que jamais conheceria. Uma só monotonia de pedras planas e nomes vazios. Meu pai tinha uma voz grave, melodiosa e sua explicação e eventual leitura de algumas lápides, me marcou profundamente, pois esse tom murmurante lembrava-me das muitas vezes que dormi em seu colo enquanto ele conversava, à noite, em prolongadas reuniões familiares, que iam muito além da minha hora de dormir. O monumento do Rio de Janeiro, traz na sua própria estrutura a eloquência do silêncio, nas pedras lisas das tumbas o dessabor do árido ambiente. A lembrança dos soldados tombados foi meu primeiro encontro com a morte em massa. Anos mais tarde, em 2001, depois do ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, houve um momento em que o nome de todos os mortos naquele ato terrorista foi recitado, um a um, solenemente, hora após hora, televisionado sem anúncios, em honra aos mortos do ataque terrorista. Foram dias de recitação contínua, solene, fúnebre, que lembraram a récita de orações em conjunto nas novenas das igrejas católicas de minha infância. Havia naquela repetição de nomes, na litania sem entonação, na listagem de desconhecidos, um após o outro, um som encantatório, mesmerizante, que abraçava almas enfermas, pelo simples e contínuo circular de vozes, em canto sem começo ou fim, eterno. Em poucos segundos em que se dava voz a quem se foi, seu nome, seu significado era repercutido através da atmosfera, irradiado para o infinito das galáxias distantes. Essas listagens não são incomuns nos momentos de luto coletivo. Todas são eloquentes. Não pude deixar de lado essa imagem da recitação, do som encantatório do pronunciar dos nomes quando me deparei com a narrativa de Julie Otsuka, no marcante livro "O Buda no sótão" de Julie Otsuka, tradução de Lilian Jenkino.
Por que tive essa reação? Pela escolha feita na maneira de narrar. Este, que me lembre, foi o primeiro livro que li onde a narrativa é do coletivo. É a história de um número enorme de pessoas, que deixa sua terra natal em busca de vida melhor no Novo Mundo. A narrativa da coletividade não permite nomes, ou melhor individualidades. Todos são anônimos, tais como os soldados caídos no front que jamais foram ou serão identificados. Não há personagens específicos, nem heróis ou heroínas. É a generalidade das experiências que nos dá a dimensão do todo, a enormidade das expectativas, dos sonhos frustrados, da regularidade das barbáries, das injustiças feitas com um grupo inteiro de humanos. Não é prosa poética. No entanto, a leveza com que Julie Otsuke cobre assuntos indignos ou desonrosos que afetam este grupo de imigrantes japoneses nos Estados Unidos no início do século XX é quase poética. Sua maneira delicada e sensível, terna, afável nos ajuda a testemunhar o dia a dia dos recém-chegados, os sucessos, dos pequenos negócios às pequenas fortunas, nos guiando depois para a inexplicável vontade de seus filhos se entrosarem na cultura do novo país que era, de fato, sua terra natal. Até o medo, o pavor. a humilhação sofrida por esses imigrantes ao serem colocados em campos de concentração durante a Segunda Guerra, por terem nascido no Japão e portanto, intrinsecamente suspeitos de apoiarem o governo de suas terras natais, todo esse terror emocional, é tratado com sutileza e finura.
Já era mais que tempo dessa história ser revisitada. Há sempre o medo daqueles cujos hábitos desconhecemos, cujas línguas não entendemos, cujas religiões não seguimos. O ser humano é tribal. Sua primeira reação será sempre a desconfiança. E em época de guerra, essa desconfiança é exacerbada. Isso não justifica o tratamento que os japoneses tiveram nos Estados Unidos. Não é um momento de orgulho da história americana. Tampouco foi escondido. Quem viveu no país certamente já ouviu falar desses campos de concentração. Mas é importante que o assunto seja recontado, a cada geração, principalmente em época em que o medo de imigrantes parece contaminar todos os países do mundo ocidental. Só essa já seria uma boa razão para ler "O Buda no sótão". Mas a prosa, a delicadeza dessa narrativa é singular e perfeita para o tema. Este é um livro que se movimenta na alma do leitor e deixa lastro. Não é a toa que ganhou o prêmio Pen/Faulkner para Ficção e se tornou um best-seller desde 2011 quando foi publicado. Recomendo sem qualquer restrição.