Karamaru 30/11/2019
VIDAS DESOLADAS
“Dublinenses”, como o próprio nome já indica, é um recorte social da Dublin do início do século passado feito por James Joyce. Nessa coletânea de contos, os quais em determinados pontos guardam semelhanças com as crônicas de costumes, o autor irlandês apresenta um vasto painel das pessoas, hábitos e costumes de uma cidade conturbada.
Através das personagens, que reaparecem entre os contos, como também em “Ulisses” e em locais mencionados em “Retrato do artista quando jovem”, Joyce pôde dar vida a diferentes tipos de personalidades e identidades, como a Sra. Kearney, de "Uma mãe", e o intelectual Gabriel, de "Os mortos", os quais transfiguraram as inquietações que permeavam os irlandeses daquela época (como até hoje), entre as quais destacam-se o repúdio ao predomínio inglês (principalmente ao anglicanismo, cultura e literatura inglesa) em paralelo com os embates entre as tradições celtas e a religião católica.
É interessante pontuar, por exemplo, que, nos primeiros contos, há um predomínio das figuras e símbolos católicos. No primeiro conto (“As irmãs”), um padre, mesmo após ser liberado de seus deveres clericais, é admitido como mentor de um jovem. Joyce descreve a relação entre o pároco e o seu pupilo de forma sutil, e, devido à carga simbólica desse conto, o leitor pode tirar diferentes conclusões a respeito da religiosidade cristã daquela sociedade, inclusive.
Fato é que personagens de diversos contos, quando desesperançosas, ao invés de procurarem o seio da religião, refugiam-se na embriaguez. Há diversas cenas envolvendo bebidas. Desse modo, a religião católica, nessa Dublin e na visão de Joyce, convive lado a lado com os hábitos ébrios e “pagãos” de sua população – por diversos momentos o leitor se depara, por exemplo, com referências à cultura celta, sobretudo por meio do cancioneiro popular.
Na política, o povo de Dublin também está dividido, mas há uma tendência ao conservadorismo, já que os dublinenses se fecham sobre si mesmos e, como já foi dito, são nacionalistas e criticam as influências externas. Um conto que revela com clareza esse painel político é “Dia de hera na lapela” (qualquer semelhança com os dias atuais não será mera coincidência...).
Todos esses aspectos revelam uma sociedade de dublinenses cansados, angustiados, divididos e marcados pela melancolia, e que se veem comparados à condição de “mortos”: apenas sobrevivem; sabem que, por mais que estudem, defendam sua nação e suas tradições, sempre viverão como uma sombra do domínio cultural e ideológico inglês.
Leitura e microrresenha feitas em parceria com Carlos (IG: @o_alfarrabista).