Manuella_3 23/12/2014
“Os fatos e acontecimentos apreendidos por nossa consciência e coloridos por nossa Afetividade serão chamados de Vivências, portanto, essas Vivências terão sempre caráter individual e particular em cada um de nós. Os fatos podem ser os mesmos para várias pessoas, as Vivências desses fatos, porém, serão sempre diferentes.” (*)
Começo a resenha com esta observação porque vamos adentrar o complicado universo da mente humana e conhecer o amargo poder do ressentimento. Como lidar com a dor de uma desilusão amorosa? O que faremos de nós (e do outro) depois de um fim? Como reunir os pedacinhos do coração e seguir em frente? Em A Vingança da Amante (Record, 336 páginas), Sally, nossa protagonista, até vai tentar, mas os caminhos que escolherá serão obscuros. Todo mundo passa por decepções, mas algumas pessoas simplesmente não conseguem lidar com esse tipo de frustração. Elas querem algo mais... querem vingança!
“Nunca se envolva com alguém que tem menos a perder que você"
Sally é uma jornalista freelancer, casada com Daniel, mas manteve um longo e ardente caso com um homem também casado, Clive. Ele vive um casamento estável com Susan há 25 anos e decide terminar o relacionamento com a amante. Sally não aceita o fim e procura a ajuda de uma psicóloga. Enquanto a dra. Helen tenta dissuadi-la da ideia de reconquistar Clive, Sally alimenta sua mágoa corrosiva. De início até tenta pôr em prática as lições da terapeuta: “inspira, barriga pra fora, expira, barriga pra dentro.” Mas a percepção do fora que levou faz a coisa desandar.
“Não lembrei a ela que minhas necessidades são apenas desejos disfarçados. Não disse que o motivo pelo qual eu não me permito sentir dor é o medo de abrir as comportas para um tsunami que vai me devastar, me reduzir a destroços contra as rochas. Não falei da raiva que, permitida ou não, chega me rasgando feito vômito, incontrolável, tóxica e com cheiro de ácido."
Embora a narrativa seja toda em formato de diário, em nada é cansativa. Pelo contrário: Sally despeja nas páginas toda sua amargura e sarcasmo cáustico. A expectativa do próximo passo é realçada a cada nova investida de Sally: aproxima-se da família do ex, sente-se a “melhor amiga” de Susan e de Emily, a filha grávida.
Temi o tempo todo: ela vai surtar, ela vai surtar! Entretanto, apesar do texto extremamente pessoal, não sabemos quem é essa mulher. O que temos ao longo das mais de 300 páginas é uma personalidade atormentada. Entendemos que o processo patológico de Sally foi disparado pela incapacidade de conviver com a perda: as promessas de felicidade ao lado do amante, de um futuro juntos. Sally não quer perder e eis o gatilho para uma sucessão de insanidades.
"Bem, não posso fingir que não seria maravilhoso ser enfim curada dessa aflição embaraçosa e debilitante. Que alívio seria acordar de manhã sem me encolher inconscientemente em antecipação ao golpe que é a consciência da perda, ou prosseguir com a minha vida levemente, livre do tumor que você representa."
Daniel é um bom marido, mas carrega o rótulo de ser “um fraco” por sua passividade diante da incapacidade financeira de manter a família. Tem uma generosidade bonita, própria das boas almas. Os filhos, vítimas de uma mãe doente, são largados. O pequeno Jamie já nem pede mais atenção e a adolescente Tilly lança à mãe desnaturada dardos de revolta e indignação. Sem efeito. Sally percebe o caos que gerou, mas permanece impassível e recolhida, concentrada apenas em sua obsessão. Ela negligencia a própria família, abandona os filhos mesmo estando dentro de casa o tempo todo. Vive entorpecida sob o efeito de zopiclone, citalopram e outras drogas que anestesiam os sentidos. É deprimente!
"Existe alguma igreja que exorciza gente malquista da vida das pessoas? Tem algum tipo de salão de beleza onde eu possa arrancar você com cera quente? Tem algum médico que possa fazer uma lavagem intestinal para me liberar de você? Existe algum arquiteto que pode reconstruir a vida que você deixou em destroços?"
O tempo todo Sally superestima a felicidade alheia. As redes sociais da família do ex são vitrines de sorrisos e vidas perfeitas, tão distantes da mediocridade de seu casamento, de sua vidinha doméstica. Para ela, os Gooding são bem-sucedidos e felizes. Eles roubaram seu futuro ao lado de Clive.
A narrativa é intensa, recheada de trechos inteligentes temperados com uma ironia perversa. Tamar Cohen disseca todos os personagens com muita habilidade, expondo dores e fraquezas, enquanto a narradora-personagem confidencia sentimentos e pensamentos duvidosos. Ponto para a autora ao construir uma Sally egocêntrica e obstinada para depois desconstruí-la (ou destruí-la?) numa mulher desequilibrada, progressivamente paranoica, envenenada por um autodesprezo deprimente. O sentimento de rejeição gera uma angústia inquietante, levando-a a usar doses cada vez maiores de antidepressivos, perdendo o controle sobre a própria vida, abandonando os cuidados com a casa, os filhos e o próprio corpo. O vazio afetivo é extremo e a perceptível despersonalização gera incapacidade para sentir emoções.
"Fui aumentada: num contexto farmacêutico, ao menos. O que é bom, porque o resto de mim se sente diminuída, reduzida, encolhida. Durmo menos, como menos, ocupo menos espaço no mundo. De alguma forma, tenho menos conteúdo agora que você não está na minha vida, por isso aceito qualquer tipo de aumento que conseguir."
Quem já teve notícias do livro sabe que há uma virada na trama – e foi por essa virada que segurei a leitura até o fim. Queria muito saber como essa história sórdida de vingança acabaria. Foi aí que pequei. Minha amiga Rízia bem que avisou que seria mais um thriller psicológico que de ação. Para altas expectativas há o risco de decepção. Não foi propriamente o que aconteceu, mas esperei mais dessa vingança. Foi genial? Sem dúvida, pelo efeito causado. A questão é que senti que todo o sofrimento de Sally e sua derrocada moral foram lentamente progressivos, mas a finalização foi rápida. O que nem de longe tirou o brilho da obra, acho que a autora foi esperta em não esmiuçar toda a elaboração da vingança, porque o texto contempla muito mais a decadência diária de Sally, que enlouquece de maneira gritante. O desfecho caminha apressado, embaçado nos detalhes, mas potencialmente agressivo e, para quem aprecia uma boa vingança, saboroso.
Fiquei como espectadora de um filme dramático, viciante, mas com certo distanciamento. Vi o sofrimento de Sally sem me sensibilizar como prefiro: colocando-me sob sua pele, absorvendo sua dor. Não julguei suas atitudes, apenas acompanhei seu processo de vingança tóxica, retroalimentada por sentimentos de baixa autoestima.
"Se eu nunca tivesse tido você, nunca teria conhecido os sentimentos que eu era capaz de ter. Isso soa como um clichê, mas acredito que para realmente conhecer o que é o amor, mesmo a paródia mais grotesca de amor que o nosso caso se tornou, é preciso primeiro conhecer o fim do amor. O amor, como a felicidade, é um sentimento que só pode ser experimentado por completo em retrospecto."
É um livro que balança o leitor, levanta o véu que recobre as sombras das nossas potenciais insanidades adormecidas. Contrapõe forças: a paixão arrebatadora e cega convertida em mágoa destrutiva (que desagua em ódio), nos esconderijos de nossa alma. Mostra o quanto uma energia represada e mal conduzida age como uma bomba, que pode até destruir o alvo, mas também espalha estilhaços ao redor.
(*) Do site: http://www.psiqweb.med.br
Resenha publicada no blog Ler para Divertir:
http://www.lerparadivertir.com/2014/11/a-vinganca-da-amante-tamar-cohen.html