Andreia Santana 03/11/2016
Um desejo derradeiro, uma mensagem necessária
Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas só tem três capítulos e ainda assim, descortina um mundo de possibilidades na mente do leitor. Que rumos essa história iria tomar? Qual seria o destino de artur paz semedo? O que ele descobriu nos arquivos da belona s.a mudaria o rumo da fábrica ou da humanidade? Nunca saberemos! Mas isso não significa que seja proibido imaginar. O barato da leitura também está na sobrevida que o leitor dá aos personagens e conflitos, para além da história contada.
O triste em Alabardas, alabardas... é que quando a história começa a engrenar, ela termina. Mas, pessoalmente, considero o livro como a oportunidade de testemunhar o desejo de um autor que tinha muito a dizer, de legar suas últimas palavras a quem estiver disposto a lê-las. E essas palavras possuem grande força, moldadas pelas crenças filosóficas humanistas que pautaram boa parte da vida e da obra de José Saramago.
Alabardas, alabardas... tinha a intenção de ser uma alegoria sobre a violência, usando como pano de fundo uma fábrica de armamentos pesados de origem milenar e que esteve envolvida, como fornecedora principal de mecanismos de destruição em massa, em boa parte das guerras travadas pela humanidade.
A indústria bélica era preocupação do escritor e o acirramento das hostilidades no mundo globalizado e desigual, temas recorrentes de seus artigos e das postagens em seu blog Cadernos de Saramago.
A história da belana s.a e de seu rastro de sangue é contada a partir de um funcionário da fábrica, artur paz semedo (em minúscula para respeitar a grafia adotada pelo autor), um homem aparentemente sem muitas ambições, metódico, burocrático e meio neurótico. Ele me lembra muito, por conta da solidão crônica e da neurose, de outros personagens icônicos de Saramago, como o escriturário Sr. José, de Todos os Nomes, ou o professor Tertuliano Máximo Afonso, de O homem duplicado.
Nos três únicos capítulos do livro conhecemos a rotina de artur, sua relação desconfortável com a ex-esposa, uma militante pacifista, e um pouco da história da belona s.a. Difícil imaginar uma fábrica que traz morte e destruição ser construída sem máculas no passado.
Após as apresentações e contextualizações, o conflito do romance seria desenvolvido a partir de uma tarefa que artur recebe do chefe supremo e herdeiro da belona s.a: fazer uma pesquisa nos arquivos da empresa, que ficam no subsolo do edifício. Não à toa esse subsolo remete a sinistras catacumbas. Daí para a frente, nunca saberemos o que acontece e só dá para imaginar os sórdidos segredos que artur desenterrou das pilhas de fichários.
Para complementar a edição póstuma do livro, três textos, assinados por Fernando Gómez Aguilera, Luis Eduardo Soares e Roberto Saviano, analisam essa intenção de romance e o inserem na bibliografia saramaguiana. Vale muito a pena ler esses artigos.
Os trechos finais, avulsos, reúnem as anotações do escritor enquanto preparava o romance e demonstram que a morte de Saramago impediu a conclusão do livro, mas não teve o poder de apagar seu legado. Esses trechos revelam ainda o medo diante da possibilidade de desaparecer antes de concluir essa última, e talvez, mais valiosa mensagem. Para seus admiradores, é bem doloroso perceber nas entrelinhas sua luta contra a debilidade provocada pela doença.
O consolo com a leitura de Alabardas, alabardas... é que, mesmo incompleta, a última mensagem de Saramago nos chega arrebatadora, desconcertante e, em tempos de renascimento de ideias totalitárias mundo afora, necessária!
site: https://mardehistorias.wordpress.com/