Alyne 05/06/2015
De uma simplicidade maravilhosa
Uma graphic novel em que a arte casa perfeitamente com o roteiro. Essa HQ teve um cuidado imenso com a retratação dos ambientes, um olhar mais voltado pras sensações. Van Gogh caminhando até o campo pra pintar e a grama batendo nos pés, o sol brilhando, as tintas recém espremidas na paleta dele. A autora reproduziu no estilo característico dela os ambientes dos quadros mais famosos dele. Nessas idas e vindas vemos muito além do que já vimos sobre o Van Gogh por aí. É como se ele vivesse no seu tempo e você estivesse acompanhando a sua vida através de parentes chegados. A reprodução das correspondências enviadas ao irmão Theo em meio às pinturas que Vincent anexava foi realmente genial. Monta pra todos nós, leitores, um background de como as coisas estavam, como Van Gogh se sentia, como lidava com o mundo e como sempre lutava com suas emoções (e nunca contra elas).
Até incidentes polêmicos como a orelha decepada são tratados com uma sensibilidade de vidro. Nada exagerado, nada muito longo. Enfim, nada que tentasse reproduzir pensamentos desconhecidos para todos nós, mas sim a experiência como um todo. Eu, particularmente, gosto muito disso: vejo como uma forma de respeitar as situações que outrém passou, sem suposições desnecessárias. Cenas tão pessoais são deixadas em aberto para que cada pessoa tente se colocar na pele de Van Gogh e sentir tudo que esse pintor sentiu durante os momentos críticos de sua vida. A linguagem não-verbal comunica muito bem, tanto os traços tremidos e padronizados dos momentos de tensão quanto a imersão na natureza ao fundo dos quadros de momentânea serenidade. Tudo na medida certa. Sobre a obra, tá certo que Barbara Stok é holandesa e trabalhou com o Museu Van Gogh de Amsterdã pra que tudo saísse de acordo com a obra do artista, mas sem dúvida alguma ela tinha o que era preciso pra produzir uma graphic novel sobre um dos maiores artistas de todos os tempos.
Eu recomendaria essa leitura pra qualquer um, interessado por arte ou não, mas recomendaria ler algo sobre a vida do próprio Van Gogh antes. Vi algumas resenhas que reclamavam de a obra não ter tratado a vida inteira do pintor, mas devemos antes compreender que essa foi a proposta da artista. Nesse caso, é interessante construir uma linha do tempo sólida antes de ler "Vincent", pois seu foco é fazer um recorte dos últimos anos de Van Gogh, bem depois de ele voltar da França. Diria que é uma leitura obrigatória para aqueles que já leram as correspondências entre os irmãos e que são fãs. Parece que entendemos ainda mais tudo que o Van Gogh dizia que sentia em relação à vida, os lugares que conheceu e as pessoas com as quais conviveu. Entendemos bem qual era a sua relação com os movimentos artísticos vigentes na época, qual era o verdadeiro valor da arte até mesmo nos grandes centros e os seus problemas acarretados por pintar de sua essência ao invés de se adaptar ao estilo do público. De uma forma geral, a ternura desse homem para com o mundo e as pessoas é completamente traduzida aqui em desenhos e trechos de cartas.
É emocionante ver Vincent e seu querido irmão Theo não como figuras inalcançáveis (ou como fotos sem fundo) mas sim presas ao cenário que pertenciam e tanto mencionavam. É diferente ler sobre alguém que está na Paris central, em Provence ou Arles quando você nunca foi a esses lugares. Na HQ essa representação gráfica é exata. Chega a ser estranho pensar que você provavelmente viu algo próximo daquela realidade dos anos 1880-1890. As obras do Vincent nos deixam com essa mística da realidade. Tudo dele é muito cheio de vida, em constante movimento e fora do normal, parece até mais real que a nossa própria realidade. Parece uma realidade pessoal, um sonho, uma epifania.
Eu sempre tive essa impressão. Por essas e outras sempre tive a curiosidade de ver a normalidade em que ele estava envolto; essa mudança que ele era capaz de fazer no seu cotidiano pra algo que fosse seu e que fosse honesto. Mais do que isso, que fosse vivo (até mesmo na época em que sua paleta era limitada).
A abordagem de seu fim é um dos pontos altos, pois existe uma relação direta com as escolhas feitas pelo pintor durante toda a sua vida. Ele realmente viveu a vida do jeito que acreditava ser seu único motivo de estar no planeta e recebeu em troca toda a intensidade que poderia vir desse tipo atitude. Até porque ele não fez isso uma única vez: pelo contrário, nunca desistiu de acreditar no que fazia porque simplesmente sentia dentro de si que aquilo era o certo pra ele. Van Gogh, obviamente um artista prolífico, vivia pra se expressar. Chega a ser doloroso relacionar tudo que ele fez com tudo que ele sacrificou e deixou pra trás para conseguir sentir paz dentro de si mesmo. Hoje temos muito com o que sonhar, graças a tudo que ele nos mostrou com seus próprios olhos e vísceras. Mais que isso, algumas pessoas sabem que não estão sozinhas. Triste ver como sua vida terminou e vários dos incidentes ocorridos durante sua caminhada por esse planeta, mas maior que isso é o seu eterno legado. Como somos sortudos por pessoas como ele nunca terem, nem por um segundo, recuado.
Quando ele falava da natureza, falava profundamente. E na HQ tem muito disso. Parece que você está andando no campo, sentindo o vento no rosto, a grama no caminho e ouvindo a história de alguém. Quando eu terminei de ler senti que tinha feito uma caminhada muito boa, de tardinha, num lugar muito bonito.