spoiler visualizarMaria 28/04/2020
"Cada família infeliz é infeliz a sua maneira"
François Mauriac, laureado com o Nobel em 1952, em reconhecimento "à profunda impregnação espiritual e artística com que seus romances penetraram o drama da vida humana", contar-nos-á uma história, propositalmente narrada na primeira pessoa, de um homem transtornado e sua obsessão em vingar-se da esposa e dos filhos, descritos por ele como seres extremamente gananciosos, ávidos em dissipar os bens que ele, nosso protagonista, havia conquistado e pelos quais sempre demonstrou um apego superior ao despertado por estes mesmos filhos descritos como interesseiros.
“Sei que há muitas famílias unidas, mas quando penso em tantos lares onde dois seres se irritam, se aborrecem à volta da mesma mesa, utilizando o mesmo lavatório, dormindo na mesma cama, reconheço que a percentagem de divórcios é muito baixa! Detestam-se, mas não podem fugir cada qual para seu canto...” (Pág. 6)
A obsessão pelo dinheiro que atribuiu à família, por exemplo, sempre fez parte do seu caráter. Afastou-se daquela a quem desposou desde o momento em que esta, não sem certa ingenuidade, confessou ter amado outro pouco antes dele, rapaz bonito demais e, segundo ela, que apenas era capaz de deixar-se amar. Nosso protagonista, mesmo sendo amado de forma tão devotada pela mãe, encarava-se como alguém incapaz de despertar o amor em uma mulher e, a partir daí, tal complexo norteará toda a sua vida doméstica. Duvidará do amor da esposa e seu casamento será construído em torno de toda a paranoia que envolve esse ser atormentado. Ridicularizando a religiosidade da mulher, confrontando-a e disputando o amor dos filhos, pelos quais nutria ciúme profundo, pois a mãe os amava de todo o coração. A única filha, aliás, por quem este pai será capaz de nutrir uma certa ternura será Mariazinha, morta ainda jovenzinha, tão doce, pura e tão cheia de amor que seria incapaz resistir-lhe. Outro a despertar-lhe o afeto será o filho da cunhada, Lucas, justamente por ser tão diferente daquilo que ele era.
Eis a prova de que tal homem, embora tenha perseguido o amor a vida inteira, o fez de forma tão equivocada que só foi capaz de construir a sua volta desconfiança, desunião, tornando-se mártir e carrasco a um só tempo.
"Quanto mais necessidade eu sentia de acreditar no meu valor, mais tu te empenhavas em provar a minha nulidade...Mas esse aspecto pouco importa. É de um outro silêncio que eu quereria vingar -me: o silêncio em que te obstinaste quanto à nossa vida a dois, quanto à nossa desunião profunda. Quantas vezes, quando assistia a peças de teatro, ou lia romances, perguntei a mim mesmo se, na vida real, existirão amantes e esposas que fazem «cenas», que se explicam de coração aberto e que sentem alívio nesses desabafos." (Pág. 7)
Ignorado -e ao mesmo tempo- temido em sua velhice triste e solitária, esse ser tomado ora pela cólera, ora pela melancolia, descrever-nos-á de forma profunda e visceral a sua vida atormentada, tornando o relato, dirigido especialmente à esposa, de quem pretendia vingar-se pela existência miserável que acredita ter levado, tão intensamente carregado das mais conflitantes emoções que o próprio leitor sentir-se-á ora padre, ora psicanalista, ora amigo íntimo do protagonista (sim, o risco de sermos julgados por aqueles a quem confessamos as nossas misérias corremos até mesmo ou, quem sabe, em maior grau, com aqueles a quem escolhemos como amigos). Embora acuse a esposa, usando ora a sua frieza, a religião -”O ódio à religião - a minha paixão dominante por largo período de tempo-,que muito te fez sofrer e nos tornou inimigos para sempre”- e, principalmente, o amor pelos filhos, pela infelicidade matrimonial, não é difícil, mesmo ao leitor que se encontre na experiência narrada e consiga transportar-se à condição do narrador, compreender como a esposa deve ter sofrido com tal marido, ainda que tenha buscado no amor materno toda a compensação pelos sofrimentos vivenciados. Afinal, embora descrita como alguém fria e indiferente àquele a quem uniu-se em sacramento tão sagrado, não é tal criatura quem procura refúgio no adultério. Pelo tom, inclusive, com que que o narrador referir-se-á à amante poderemos vislumbrar claramente a sua face tirânica e mesquinha (Não Julgueis! Perdoe, Pai, porque peco :-P):
“Não, estou a exagerar. A forçar a minha auto-crítica. Amei e talvez tenha sido amado ...em 1909, no declínio da minha juventude. Não há razão para passar em branco esta aventura! Tiveste conhecimento dela e mencionaste - a no dia do ajuste de contas. Consegui salvar uma jovem professora do ensino oficial acusada de infanticídio. Ao princípio, entregou-se por gratidão, mas depois...Sim, nesse ano conheci o amor. Foi a minha insaciabilidade que deitou tudo a perder. Não me bastou tê-la na penúria, quase na miséria. Queria que estivesse sempre à minha disposição, sem ver ninguém. Tinha de estar presa, ou livre, conforme os meus caprichos ou os meus momentos de disponibilidade. Era minha. O meu gosto de possuir, usar e abusar estende-se aos seres humanos. Gostaria de ter tido escravos. Desta vez, pensei ter encontrado uma vítima à medida das minhas exigências. Vigiava-lhe até os olhares ...Mas... lá estou a esquecer a promessa de não falar nisto. Ela partiu para Paris, não aguentou. “(Pág. 48-49)
Se parte da infelicidade do protagonista advém da descrença no amor da esposa, esta não tinha apenas o fantasma de um belo noivo desfeito para atormentar-se, mas diversos casos e, inclusive, um filho havido fora do casamento. E é aí que reside o requinte da vingança: o pai vingar-se-ia dos filhos gananciosos deixando a sua fortuna ao filho que gerou fora do casamento, a quem abandonara e, pelo tom depreciativo que escolhe usar, fica clara a sua aversão -” como eu detesto aquelas pernas grandes de Roberto, o busto curto como o meu, a cabeça metida entre os ombros. Nele, todos os meus defeitos se acentuam. Eu tenho as feições compridas, mas ele tem cara de cavalo e figura de corcunda. Até a voz é de corcunda” - tornando-o unicamente o instrumento da fúria depositada contra aqueles aos quais atribui as maiores infâmias, mas sem reconhecer em momento algum a sua falha como pai.
“Tudo o que recebi da minha família irá para esse filho desconhecido, esse rapaz com quem amanhã terei uma entrevista. Seja ele quem for, não vos conhece, não tomou parte nas vossas conjuras. Foi educado longe de mim, por isso não me odeia. E, se me odiar, o objecto do seu ódio é um ser abstracto, sem qualquer relação com a minha pessoa ...”(Pág. 97)
Trocando em miúdos: Ansiando desesperadamente por amor, o homem passara uma existência inteira semeando o ódio. Planejando transferir toda fortuna ao filho “bastardo” e, sendo por este, “traído” (por medo,acaba contando tudo aos “irmãos”), dar-se-á por vencido e decide que os filhos tomem posse da tão desejada herança. É a partir de tal momento que ocorre a conversão, pois tais reflexões acompanham a morte da esposa, a quem dedicou profundo ódio durante décadas (nunca ficou tão clara a ideia de que, por vezes,o ódio nada mais é do que um amor enfermo). Nosso protagonista atinge a compreensão -não sem uma evolução espiritual, podendo-se, claro, usar o termo “milagre”- de que sempre fora possuído pela ganância e pelo orgulho, tendo o coração envolto em um nó de víboras. Para encontrar a paz, teve que absolver não apenas àqueles a quem odiou por tanto tempo mas, sobretudo, a si mesmo.