Luis 19/10/2015
Enfim, Elis.
Já não era sem tempo.
A maior cantora da história do Brasil, cuja a curta trajetória, encerrada precocemente aos trinta e seis anos, em 1982, arrebatou um país, merecia há décadas ter a sua história registrada em letra de forma, de maneira íntegra , confiável e respeitosa, como bem dito no prefácio assinado por Zuza Homem de Mello. O único registro publicado em livro e que, embora tenha sido um best seller, estava longe de ser a esperada biografia da artista, “Furação Elis”, escrito por Regina Echeverria, trazia mais perguntas (inúmeras) do que respostas (poucas) e só destacou a imensa dívida bibliográfica que crescia dia a dia. Com o alentado “Nada Será Com Antes” (Master Books, 2015), Julio Maria pagou esse débito com juros e correção monetária.
Logo de início, o autor mostrou a que veio, não se intimidando com as pedras do caminho que golpearam sua antecessora. Maria com extrema sensibilidade inaugura o relato com uma detalhada descrição dos últimos momentos de Elis, um dos muitos tabus evitados pelo fraco “Furação Elis”. Em sete páginas brilhantes, que seriam magistralmente complementadas no capítulo final, toda a dor da perda inesperada é exposta de maneira inédita, com destaque para o desespero de Samuel Mac Dowel, então namorado da estrela e a última pessoa a falar com Elis e que, após uma dramática ligação, ruma para sua casa na esperança de uma salvação que não aconteceria. Era a manhã de 19 de janeiro de 1982.
Esse começo arrebatador (supostamente) nos prepara para o turbilhão de emoções que foi a vida de Elis Regina Carvalho da Costa. A partir daí, a força da história transcende as páginas e literalmente sequestra o leitor que só à custa de muita luta consegue se desvencilhar do volume antes do ponto final. No meu caso, foram dois dias respirando Elis em cada uma das 424 páginas.
É quase impossível destacar algo em “Nada Será Como Antes”. Tudo ali é cume, não há vales, não há exageros, nem lapsos. A gigante de menos de 1,60 metros, se engrandece ainda mais à medida que Julio vai nos aproximando da personagem que, em muitos momentos, parece saída da mais fértil obra de ficção.
A fase gaúcha, com a primeira e frustrada tentativa de ingressar no programa infantil “Clube do Guri”, já expunha o misto de autoconfiança e insegurança que a acompanhariam para sempre. A vocação surgida desde cedo, beira a atmosfera de lenda, quando já adolescente e tendo colocado no bolso o meio radiofônico de Porto Alegre, chama a atenção da Continental que a leva para a sua primeira aventura fonográfica no Rio de Janeiro, a frustrante tentativa de fazê-la um clone de Cely Campello. “Viva a Brotolândia”, produção capitaneada por Carlos Imperial, seria para sempre renegada por Elis pois em nada antecipava o fenômeno que ela viria a ser. Não deixa de ser curioso o paralelo com um outro começo também nada promissor : o de Roberto Carlos, que também sob as asas do mesmo Imperial, tentou emplacar como um cover de João Gilberto.
Depois de mais três discos equivocados, a estrela começa a brilhar após se instalar definitivamente em terras cariocas. Para ser mais exato, no mítico Beco das Garrafas, onde encontraria a dupla Miele e Bôscoli, sendo que com o segundo, protagonizaria uma das relações mais conturbadas do showbizz brasileiro. Mas a gaúcha só se tornaria grande mesmo em terras paulistas, a partir de 1965, quando após ganhar o festival da Excelsior com “Arrastão”, seu primeiro cavalo de batalha, é contratada pela Record e passa a estrelar um dos principais musicais da era de ouro da emissora, ao lado de Jair Rodrigues, “Dois na Bossa”.
Os acontecimentos se dão de forma vertiginosa e mostram uma cantora que à medida que exercia enorme influência e magnetismo sobre publico , crítica e demais artistas, também era vista por outros como uma figura difícil, geniosa e , tida por alguns, até como mau caráter. São muitos os episódios controversos que opuseram Elis a colegas como Eliseth Cardoso, Beth Carvalho, Cláudia, Nara Leão Maysa e tantas outras. Maria não se furta a tratar desses espinhos de forma responsável, longe da exploração e do sensacionalismo. Nem só de perfume se fazem as rosas.
Por outro lado, o livro capta de forma impressionante a quase sobrenatural relação de Elis com seus músicos e compositores. Edu Lobo, Gilberto Gil, João Bosco, Aldir Blanc , Caetano Veloso, Guilherme Arantes, Ivan Lins, Chico Buarque, Francis Hime, Paulo César Pinheiro e, sobretudo, Milton Nascimento, que, até hoje só compõe pensando em sua voz.
De tantos episódios, talvez o mais emblemático seja o de Renato Teixeira : um dia o compositor recebeu uma ligação da cantora pedido que comparecesse ao estúdio. Chegando lá, o compositor é surpreendido pela gravação de “ Sentimental Eu fico”, uma de suas canções. Eufórico, volta para casa em êxtase por finalmente ter uma de suas criações na voz da cantora. No dia seguinte, o telefone toca com uma nova convocação de Elis. Renato volta ao estúdio e presencia um momento mágico que marcaria a história da MPB e mudaria a sua própria, a gravação de “Romaria”. Para tornar ainda mais mítica a relação, Elis pouco cantaria a música ao vivo, assustada por um episódio em que uma senhora, logo após um show, a procurou chorando com um santinho de Nossa Senhora Aparecida nas mãos, pedindo um autógrafo como se pedisse uma benção. Ela nunca mais cantou a música.
A sua entrega a shows e estúdios contrastava com o fato de, a despeito de apontada como a maior do Brasil, não ser efetivamente uma cantora de massas. Um dos muitos fatos que a incomodava.
Pouco antes de sua morte era justamente esse o objetivo que perseguia. Após uma vitoriosa passagem pela Warner, depois de quase uma vida na Phillips, ela portava na Som Livre com toda a estrutura que a Globo, dona da gravadora, podia oferecer para finalmente colocá-la no hit parade. O bolero “Me deixas Loucas”, rejeitado por Gal e Maria Bethânia, antes de se ofertado a Elis, seria a sua última gravação, entraria na novela “Brilhante” e acabaria como uma das mais executadas no rádio.
Separada de César Camargo Mariano, além de marido seu escudeiro musical durante quase 10 anos, e com um novo conceito de show na praça. “Tem Azul”, a cantora tentava se reinventar pela enésima vez enfrentando os seus demônios internos. Data esta época, o seu envolvimento com a cocaína, contrariando todo um histórico de ojeriza a qualquer tipo de droga. Em pouco menos de 10 meses de uso, Elis se viciou o que culminou com o terrível acidente que calou para sempre a sua voz.
Julio Maria talvez tenha feito mais do que escrever a biografia definitiva do mito, ele consegue ressuscitar Elis. Em cada página, parágrafo e linha sua imagem e voz impregnam o leitor de um jeito que só pode ser definido pelo título de uma das centenas de canções que imortalizou : Fascinação.