jota 08/09/2020Avaliação da leitura: 4,2/5,0 – MUITO BOM (Bandini queimou seu filme em Hollywood?)Nesta edição da L&PM (2011) do último volume da tetralogia informal sobre Arturo Bandini, alter ego de John Fante (1909-1983), o elogio do artista foi feito pelo escritor Caio Fernando Abreu em texto de 1985, que pode ser lido como prefácio. Para ele “Bandini é palhaço, herói, gigolô, artista, vagabundo, romântico: tudo ao mesmo tempo. Daí talvez sua irresistível simpatia, capaz de fazer com que qualquer um de nós se identifique com suas confusões.” No entanto, Sonhos de Bunker Hill não era seu livro preferido do autor, mas Pergunte ao Pó, obra que lhe causou a mesma sensação de novidade que lhe propiciara, anos antes, a leitura de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Apesar de sua admiração por Fante, ele não o tinha como um dos grandes da literatura americana, vários críticos americanos também não, mesmo reconhecendo sua importância no vasto painel das letras do país. Fante não se detinha sobre os grandes dramas humanos, mas sobre os pequenos acontecimentos na vida das pessoas, alegrias, tristezas, conquistas e frustrações comuns a todos nós.
Daí que seus personagens sempre cativaram os leitores, especialmente os mais jovens e até mesmo alguns autores da chamada contracultura, caso de Charles Bukowski, um grande admirador de Fante. Falando em admiração, Bandini admirava (certamente Fante também) os seguintes autores, que mudaram sua vida como afirma a certa altura: Sherwood Anderson, Knut Hamsun, Jack London, Dostoievski, D’Annunzio, Pirandello, Flaubert, Maupassant. Do primeiro cita particularmente Winesburg, Ohio e, do norueguês, Fome, dois volumes já clássicos. Em No Caminho de Los Angeles Bandini apreciava absurdamente Sinclair Lewis até vê-lo um dia num restaurante em Los Angeles. Dirigiu-se a ele mas o escritor ficou indiferente às palavras gentis que Bandini dissera, não apertou a mão que ele lhe estendera e então, a partir daí, passou a detestar o autor de Babbitt. Não sem antes enviar-lhe um bilhete desaforado através de um garçom e ver tudo terminar de modo inusitado. Se alguns trechos das histórias vividas por Bandini nos fazem rir ou sorrir, como nesse caso, ao mesmo tempo podem deixar em nossos lábios certo gosto de fel, como ele deve ter sentido na ocasião...
Em Sonhos de Bunker Hill, ao contrário do que acontecia em No Caminho de Los Angeles, a família do personagem parece que voltou a ser a mesma de Espere a Primavera, Bandini, mas não conferi toda a informação. Seu pai está vivo, a família continua vivendo em Boulder, no Colorado, porém sobre isso acho que preciso dar uma verificada também em Pergunte ao Pó, do qual me recordo pouquíssima coisa: lembro-me que o nome todo do personagem era Arturo Dominic Bandini; em No Caminho desaparece Dominic e entra Gabriel no lugar, vá entender. Bem, Sonhos é de 1982, um ano antes da morte do autor e conta principalmente as atribulações de Bandini aspirante a escritor em Los Angeles e depois propriamente em Hollywood como roteirista durante os anos 1930. Tudo narrado de um modo quase sempre engraçado, com bastante ironia e sarcasmo, nada assim aparentemente tão a sério, a coisa toda dita em poucas páginas. Talvez, por isso, Fante não seja considerado “um dos grandes da literatura americana” como já foi dito. Embora ele tenha construído personagens antológicos que contracenam com Bandini, ele mesmo uma grande figura.
Cito alguns deles me valendo novamente de Abreu, para não alongar muito esses comentários já longos. Eles são: “a roteirista Velda van der Zee, autora (em coautoria com Bandini) do hilariante faroeste Sin City, ou o também roteirista Frank Edgington, vagamente homossexual, com quem Bandini divide uma história ambígua, regada a vinho e maconha (ele agora está menos moralista do que quando conheceu Camila Lopez, a inesquecível princesa maia de sapatos em farrapos, de Pergunte ao Pó), o lutador Duque de Sardenha, ou a amante Helen Brownell, dona do hotel onde ele mora.” Com cada um deles Bandini mantém um tipo de relação no mínimo curiosa; por exemplo, Helen, sua amante é algumas décadas mais velha do que ele e ainda por cima usa dentadura. Na maioria das vezes isso provoca certo tipo de riso no leitor porque os sentimentos de Bandini são mutantes, podem passar rapidamente do amor para o ódio, da admiração para o desprezo, voltar atrás etc. Fante faz tudo isso muito bem, então sua literatura, que parece enganosamente simples, revela-se muito mais elaborada do que supúnhamos.
Perto do final de Sonhos, quando visita os parentes no Colorado, porque algumas coisas não deram muito certo em Hollywood, Bandini transita do cômico para o quase trágico ao comparecer a uma festa para a qual fora convidado por alguns jovens ricos de Boulder, curiosos, mas mordazes acerca de seu relativo sucesso na capital do cinema. Bandini mente descaradamente para todos sobre suas relações com os famosos de Hollywood. E cita uma imensa lista de atrizes de sucesso daquele tempo (era a época dourada do cinema americano): diz que jantou com algumas, com outras dançou, que fez amor com outras ainda etc. Que nunca desapontou nenhuma mulher... Fala da vida luxuosa que leva lá, que joga golfe com os grandes atores de então e resume: “Jogo de dia, trepo no crepúsculo e trabalho à noite. (...) Todo mundo me adora.” Será mesmo? Claro que não. Nós que lemos tudo até ali sabemos que as coisas não são (não foram) de modo algum como ele conta.
Apesar de não levar muita coisa a sério, Bandini também tem consciência da dificuldade de transformar seu sonho em realidade, então nesses momentos parece estar delirando, sonhando acordado, isso sim. O sonho de Holden Caulfield era o de ser o apanhador no campo de centeio, salvar as crianças de “uma louca queda de um penhasco”, o dele era simplesmente ter um trabalho criativo e gratificante, escrever. Nada a ver com aquela sujeirada toda e o mau cheiro da indústria de pescado onde trabalhara até pouco tempo (durante o período em que se passavam as histórias de No Caminho de Los Angeles). Ele não pode viver sem seus sonhos (quem pode?), então, depois de um incidente na festa dos ricaços, sem nem mesmo se despedir de sua família, somente de um irmão, com apenas dezessete dólares na carteira um Bandini amargurado mas esperançoso parte novamente para Bunker Hill. Em busca da realização do sonho, tornar-se um escritor de sucesso, implora a Deus e ao ídolo Knut Hamsun para que lhe deem força. Suas preces serão atendidas?
Lido entre 04 e 07/09/2020.