Mônica 22/07/2020
Não tivesse realizado o monumento em forma de livro chamado Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust poderia ter ficado marcado entre seus contemporâneos pelo trabalho como tradutor do esteta inglês John Ruskin. Escritor polivalente e crítico de arte fundamental da era vitoriana, Ruskin se tornou importante também nas discussões sobre a arte durante a Belle Époque, a despeito da proibição imposta pelo próprio autor a traduções integrais de suas obras no país. Assim, quando da sua morte, em 1900, desencadeou-se uma corrida editorial para que elas fossem enfim realizadas e publicadas.
Proust começara a traduzi-lo como um projeto pessoal em 1899, poucos anos depois dos primeiros contatos com o trabalho de Ruskin. Encontrando-se estagnado na escrita de Jean Santeuil, o francês tentava apagar a péssima impressão deixada com seu primeiro livro, O Prazer e os Dias, que lhe rendera inclusive a reputação de escritor “decadente”. Precisando se reinventar e almejando ser lido e respeitado pelos seus pares, Proust encontrou na publicação do nome da moda uma brecha para que isso pudesse acontecer.
Quis o destino que, ironicamente, o escritor avesso às traduções francesas tivesse como tradutor mais icônico na França alguém que, além de não advogar ou praticar uma tradução se apagando diante do autor, nem sequer tinha total domínio da língua inglesa — contando inclusive com a ajuda de sua mãe para realizar o trabalho. Proust, que escreveu em um dos prefácios que a tradução por si só não seria suficiente para os leitores, pesou a mão nas notas e nos textos complementares, a ponto de usá-los também como um meio de introduzir sua própria voz, alfinetando outros tradutores de Ruskin e, de certa forma, rivalizando com o próprio traduzido.
A pequena janela temporal de relevância do inglês em terras francesas foi bem aproveitada por Proust, que soube nas suas duas publicações — La Bible d’Amiens e Sésame et les Lyz, realizadas em 1904 e 1906, respectivamente — chamar a atenção para si, ao se credenciar, de forma ousada e prepotente, como tradutor, guia, intérprete e crítico de Ruskin. As obras e as traduções se encaminharam para o segundo plano na França, eclipsados por Proust, seu estilo e seus textos complementares, que ficaram grandes — em todos os sentidos — o suficiente para se descolarem de sua origem e chegarem avulsos até nós.
Dos escritos que orbitam as traduções, o mais conhecido é Sobre a Leitura (Sur la lecture), prefácio do livro Sésame et les Lyz, obra que se resume a reunir duas conferências proferidas por Ruskin em 1864: Of Kings’ Treasuries, que fala sobre a leitura e é efetivamente o foco do texto de Proust, e Of Queens’ Garden, que discursa sobre o papel da mulher na sociedade.
Sabendo-se ou não dos detalhes da empreitada de Proust, o texto assume sua emancipação de maneira natural, pois o autor acaba por apenas tangenciar a obra que se propõe introduzir — e isso somente para contrapô-la. Para discutir e comunicar seus próprios pensamentos sobre o assunto, Proust usa suas próprias memórias de leitor quando criança como ponto de partida.
“Talvez não haja, em nossa infância, dias que tenhamos vivido mais plenamente do que aqueles que acreditamos ter perdido sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. Tudo aquilo que, parecia-nos, preenchia-os para os outros e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino — o jogo para o qual um amigo vinha nos buscar no trecho mais interessante, a abelha ou o raio de sol incômodos que nos forçavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, o lanche que nos haviam feito levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, intocado, enquanto acima de nossa cabeça o sol perdia a intensidade no céu azul, o jantar para o qual era preciso voltar e durante o qual só pensávamos em subir para terminar, assim que possível, o capítulo interrompido — tudo isso, que a leitura deveria ter-nos permitido perceber apenas como uma inconveniência, ela pelo contrário gravava em nós como uma lembrança tão doce (tão mais preciosa segundo nosso julgamento atual do que aquilo que líamos então com tanto amor) que, se ainda hoje nos acontece de folhear esses livros de antigamente, fazemo-lo como os únicos registros que guardamos dos dias passados e com a esperança de vermos refletidas em suas páginas as moradas e lagunas que não existem mais.” (p. 5–6)
Assim como enxergamos muito do crítico de arte em toda a obra de Em Busca do Tempo Perdido, é possível ver uma amostra do romancista no ensaio: a exploração das memórias afetivas, desenvolvida nas exauridas sentenças que lhe são características, serve de base para as reflexões que Proust pretende fazer. A leitura aparece como um esboço de madeleine; um gatilho para a recordação e criação de memória não só da própria experiência, mas de tudo que a contorna, pois a leitura — agora revestida de memória — se ressignifica e ganha um aspecto diferente. Todos os pequenos grandes dramas do Marcelzinho leitor — a angústia da espera pela leitura, a tristeza do término do livro e do desaparecimento das personagens que lhe requisitaram tanto investimento emocional ou os requintes de crueldade do escritor ao dar o salto do epílogo — precisam compartilhar espaço com detalhes que pareciam alheios a sua experiência: a casa, o quarto, as refeições intermináveis, a catedral.
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