Alex 19/06/2015Primeiro como tragédia, depois como farsaPrimeiro livro de uma possível trilogia, O Árabe do Futuro é uma autobiografia que retrata o crescimento de Riad Sattouf durante os governos Kaddaffi (Líbia) e Hafez Al-Assad (Síria). Ambos buscavam o progresso e o desenvolvimento de seus países com base no nacionalismo e no secularismo.
Com uma narrativa em cores (há uma tonalidade própria para cada ambiente), o livro capta a óptica de uma criança que cresce em um mundo hostil e em constante mudança, mas com um olhar de inocência, admiração e espanto, que vagamente lembra personagens como Mafalda e sua atitude filosófica frente à eterna novidade do mundo.
E se por um lado nos divertimos com as crônicas familiares, descobertas, e enrascadas em que o pequeno Riad se mete, por outro lado, à medida que Riad vai internalizando sua visão de universo, nos deparamos com um mundo que vai se evidenciando cada vez mais contraditório e violento, com governos tirânicos e pessoas que muitas vezes agem de maneira irracional, com superstição (mythos), ou impulsividade.
Riad está quase sempre acompanhado de seus pais, o sírio Abdel e a francesa Clémentine. Seu pai, Abdel, talvez fruto de algum rancor nutrido pelo autor, é negativamente destacado pelo lado racista, machista e sectário, tornando-se um verdadeiro porta-voz do senso-comum. Era aquele que queria integrar-se à modernidade e ao progresso da sociedade europeia, mas não o consegue.
Já a mãe de Riad, Clémentine, seria a visão de mundo coerente e sensata, embora submissa, cansada e apagada. Um verdadeiro contrapeso ao despotismo e à emotividade do pai. Age sempre com lógica e razão (logos), forma que o autor encontra para legitimar a sua própria opinião que emite através da personagem, quando, por exemplo, ridiculariza o governo líbio na rádio; quando censura a opinião antissemita de Abdel; e quando busca salvar um cachorrinho indefeso de uma morte truculenta por crianças sírias que encarnavam verdadeiros bárbaros. Em suma, é a ocidental educada e esclarecida que contrasta o árabe temperamental (repare nos elementos infantis que Sattouf atribui a Abdel) e violento, que apoia ditadores, espanca crianças e diz que enforcar pessoas é "um mal necessário".
Além disso, a noção de que Sattouf estaria retratando os dois países árabes com fidedignidade porque lá morou (e porque teria uma metade árabe) se desfaz ao constatarmos que, por exemplo, a representação da Síria e de seu povo é bastante superficial, injusta e pobre, retratando o país como muito sujo, perigoso e inacabado (novamente contrastando com a França, apresentada como segura, de cercas baixas, vibrante e florescente), com funcionários públicos que quase sempre são apadrinhados ou corruptos, cidadãos que agem educadamente apenas por temor ao “regime”, e garotos violentos, vulgares e provocantes (não é necessário novamente ressaltar a oposição desses meninos com o delicado, inteligente e inocente Riad). Não há um único contraponto a toda essa estereotipização. O próprio autor, em entrevista, reconheceu que mal sabe sobre a Síria, e que nunca voltou lá depois de 1990. Torna-se óbvio que, com uma fotografia tão vulgar, o autor apenas busca dar elementos que justifiquem a atual a revolta armada contra o filho de Hafez Al-Assad, o atual presidente Bashar Al-Assad.
Assim, ao dar uma representação fraca e demasiadamente simplista da Síria e da Líbia, apresentando-os por meio de algumas poucas simbologias negativas, o livro deixa de lado importantes progressos que os governos dessas nações fizeram. A Líbia sob Muammar Kaddafi melhorou radicalmente as condições de vida para as massas. Grande parte de suas necessidades básicas como saúde, educação, alimentação e habitação, até então inexistentes, se tornaram políticas públicas e de acesso universal e gratuito (embora o livro tente deslegitimar isso, ressaltando a agonia da luta por bananas e o absurdo de se perder a casa após um simples passeio).
Na Síria houve progresso nas condições das mulheres, e integração social das diferentes etnias, religiões e tribos no país, tornando esse antiquíssimo país de maioria sunita em um grande mosaico étnico, com drusos, curdos, alauitas, armênios, cristãos, e sunitas convivendo em grandes centros, como Aleppo, que antes de 2011 era uma das cidades mais cosmopolitas do mundo.
Infelizmente, ao final da leitura fica uma impressão de que, sob pretexto de descrever sua infância (o que por si só já é um argumento frágil, pois é impossível que alguém relembre a primeira década de vida com tantos detalhes, senão por um processo quase que inteiramente de reconstrução), o autor apenas reforça velhos preconceitos e clichês contra esses povos árabes, assim como corrobora a demonização de governos e líderes independentes do império anglo-saxão-sionista, como já vemos todos os dias na grande mídia.
Hoje a Líbia e a Síria são estados destruídos, após potências ocidentais em busca de ganhos geopolíticos - dentre as quais a França (com Sarkozy na Líbia e François Hollande na Síria) - fornecerem, juntas com Arábia Saudita, Qatar, e Turquia, armas, logística, e dinheiro a dezenas de grupos jihadistas wahhabitas (a maioria estrangeiros), como a Al-Qaeda (na Síria, Al-Nusra) e a mais uma miríade de grupos mercenários, além de impingir sanções e bombardeios ilegais a ambos países.
A Líbia, que antes de 2011 possuía o IDH mais elevado da África, está em completo pandemônio, terra de ninguém, atolada em uma guerra entre centenas de milícias, assim como a Síria, onde já morreram mais de 300 mil pessoas e corre o risco, se o governo sírio colapsar, de desintegrar-se em vários mini-estados, com um possível genocídio das minorias étnicas pelos rebeldes, desestabilizando ainda mais a região. A cidade de Homs foi quase que completamente destruída e o pequeno vilarejo de Ter Maaleh, retratado no livro, até esta data estava sob domínio de insurgentes e não se sabe o que aconteceu com a sua população. Nos dois países, o falso califado do Estado Islâmico (em árabe Daesh), fruto direto da invasão e destruição do Iraque em 2003 e da política de armar rebeldes linha-dura na Síria, já domina várias porções territoriais, trucidando os locais com extrema crueldade e barbárie.
E como na profecia de Marx em que a tragédia se repete como farsa, ao final, o autor demonstra que se até a metade do livro o pequeno Riad não entendia a violência irracional ao seu redor e até tenta apartá-la, nas últimas páginas ele passa a enxergar uma certa justiça na violência (quando revida a agressão dos primos) e, no fim, até mesmo prazer (quando pisa e xinga o alemão), mostrando que começa a assimilar (ou ser assimilado) a ethos de intolerância e irracionalidade. Esse desfecho sombrio, tanto do personagem como dos países, nos remete a conclusão de que o árabe do futuro de Sattouf morreu ainda no passado.
Resumindo, se o leitor deseja conhecer e compreender melhor os complexos precedentes que deram causa ao que hoje ocorre na região, não recomendo de forma alguma esta graphic novel.