Na dobra do dia

Na dobra do dia Marcelo Moutinho




Resenhas - Na dobra do dia


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Henrique Fendrich 07/09/2019

Marcelo Moutinho e a cidade que se vai
Nos recantos do Rio de Janeiro, entre livros, samba e cerveja, viceja uma cidade que costuma escapar à vista. É verdade que, aos poucos, essa cidade se vai, deixando como resquícios bares que encerram universos inteiros, mas, nas crônicas de Marcelo Moutinho, ela ainda vive em todo o seu esplendor. “Na dobra do dia” (Rocco) é, afinal, o testemunho do cronista diante da passagem do tempo em sua cidade. A boemia carioca, o carnaval, os samba-enredos que são parte da alma da cidade, os subúrbios, a Lapa, essa rainha decadente que só se dá a ver a quem vive nela, tudo isso é objeto não apenas da atenção, mas da exaltação do cronista.

À medida que passa pelas ruas do Rio de Janeiro, interessando-se pelos nomes, pelos tipos e pelas histórias que carregam, Moutinho sente também sobre si o peso do tempo. Toda vez que vai ao subúrbio, por exemplo, a infância lhe dói. Lembra-se do dia de Cosme e Damião em Madureira, lembra-se da trilha sonora que o pai colocava nas viagens Barra/Madureira. Hoje o pai não está mais ali para lhe proteger das freadas da vida, hoje as casas de sua infância já não dizem nada às novas gerações de sua família. Tudo se esfarela até virar grão, imperceptível.

Não estranha, pois, que haja um acento melancólico naquilo que escreve. Há experiências líricas intensas, como a crônica-título, “Casa Vazia”, “Hotel com garagem” e “O homem na areia”. Em seus incidentes domésticos, Moutinho apresenta a gata Mila. Também fala sobre o amor – e a amizade, uma de suas formas. Reverencia seus mestres, como Paulo Mendes Campos e João do Rio, escritores com quem descobriu que há mais pessoas tateando sentidos, perplexas com o abismo que, dia após dia, envolve a vida – esse samba desconjuntado.

site: http://rubem.wordpress.com
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Manuella_3 08/08/2016

As saudades de Marcelo Moutinho são também as minhas saudades. Basta revelar isto para que o leitor perceba o quanto estou encantada com a leitura de Na dobra do dia (Rocco, 232 páginas). Este livro de crônicas é um relicário de lembranças preciosas demais para que permaneçam apenas na cabeça. O leitor é o depositário de recordações da meninice, da adolescência e do homem que escreve.

Desdobrando segredos, o autor confidencia sentimentos. Madureira, bairro da infância, está presente em boa parte da obra, como na crônica ‘Artigo Definido’, quando conta da casa da bisavó:

"Invariavelmente cheio de gente, o sobrado era a sede dos almoços, o camarote do carnaval, o refúgio sempre às ordens para quem, por alguma razão, precisasse de abrigo".

‘O Braço do Pai’ é especialmente comovente, a ligação entre pai e filho é enaltecida, a saudade é corrosiva, de quando sentava no banco dianteiro (que criança nunca brigou pelo lugar?) do velho Corcel:

"Todas as vezes em que se via obrigado a dar uma freada brusca, ato contínuo, esticava o braço para o lado direito, tentando (ou imaginando tentar) proteger uma possível topada minha contra o para-brisa. (...) Porque hoje dói saber que o braço do pai não está mais por aqui. Nem que seja para me proteger das freadas que dá a vida."

As páginas vão passando e identifico-me, cada vez mais, com a prosa. Em ‘Sonhos’, uma frase que resume tudo o que (eu e ele) sentimos:

"Toda vez que vou ao subúrbio, a infância dói em mim."

Pausa aqui. A frase acima é curta, certeira: a casa da minha infância acalenta a menina em mim. Tenho um amor absurdo pelo jardim que não está mais lá, pelo alpendre que saiu de cena, pela garagem e terraço onde corria e esfolava o joelho e o dedão do pé, na algazarra de fugir do pega-pega (ou pique-pega). Nada está como antes, agora há salas e alunos concentrados. Mas no meu coração estou lá, toda a minha infância, balões e cheiro de festa, primos nas férias, essas reminiscências mais caras, indestrutíveis, eternas.

Vamos falar de amor – e de suas dores também. Em ‘Para Além do Idílio’, Marcelo me apaixona, me pede outra pausa (faça isso, faça mais vezes isso!), após a fartura que me serviu. Preciso digerir:

"Histórias de amor são opções. E opções são homicidas por si só. Matam, ainda que em certas ocasiões com dó, as concorrentes."

Paro, observo, ouço dentro de mim. Olho através da janela, espero algum sinal ou tradução. O texto prossegue:

"Mas não tem nada, não. Às vezes, o amor precisa mesmo morrer um pouco para germinar, como cantou o Gil. Ou, sem morrer, transformar-se em coisa distinta, e ainda assim amor. Sem o frisson acelerado do princípio, sem a miragem da perfeição. Com cicatrizes, juras, brigas, perdões, rusgas, acidentes, palavras mal ditas, dores nunca sanadas, mais quilometragem percorrida que a percorrer, ainda assim amor."

Falar em saudade é falar de mim, sou saudosista, dada à nostalgia em doses saudáveis. Sou propriedade de outros tempos. E a música é o combustível certo para a contraditória evocação do que já foi, mas que ainda permanece. 'Cegos de tanto vê-la' é poesia com trilha sonora. A rotina nos torna (quase) impermeáveis:

"Lembro da canção 'Estrangeiro', na qual Caetano diz que o pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara (...). 'E eu menos a conhecera mais a amara/Sou cego de tanto vê-la', confessa o compositor. A convivência adormeceu o fascínio. De tanto vê-la, Caetano já não pode vislumbrar a Baía de Guanabara, sua beleza ou feiúra, a sutileza de suas curvas margeando e dando forma à cidade. A imensa boia d'água tornou-se apenas objeto na paisagem. Estanque. O amor, às vezes, é a Baía de Guanabara que já não enxergamos."

O autor relembra muitas canções, o que é um encanto ainda maior para o leitor. Em 'Carnaval, doce ilusão', batuca sambas-enredo inesquecíveis e revela que, contra toda a família portelense, seu coração seguiu o do pai, torcedor do Império Serrano. Uma paixão arrebatadora, capaz de descarregar a emoção de toda uma vida:

"Faltando três dias para o desfile, telefonei para a quadra e comprei a fantasia. Sozinho, sem conhecer ninguém da ala ou da escola, cheguei à avenida. Ao pisar na Sapucaí, desabei no choro. (...) Ali, estava a casa da minha bisavó, estava o primeiro amor num parquinho de Madureira, estava o meu pai. Até hoje, a cada vez que entro na quadra ou desfilo no Império, sinto como se estivesse com ele, a barriga inflada de chope, o Hollywood no bolso da camisa. Escutar os sambas do Império é meu modo de vencer tardiamente o câncer que o derrotou, de tê-lo novamente comigo. E restaurar uma nesga de ilusão que, como um dia cantou a Vila Isabel, ajuda a dar 'razões pra vida tão real da quarta-feira'."

Como acumulamos coisas! Estocamos, guardamos, apegados. E no meio das páginas de um livro, papéis que assinalam um tempo esquecido, sonhos não realizados, coisas que vamos deixando para trás ou, inevitavelmente, substituímos por novos projetos - muitas vezes a vida muda a rota:

"Sentimentos e vontades e sonhos podados no decorrer do tempo, No girar do moto-contínuo que mói, sem dó, aquilo que fomos um dia. Não há nostalgia nessa observação. A andança pelo tempo pressupõe mesmo pequenas traições ao passado. Esquecimento. O espaço da lembrança não suporta a soma de todas as coisas. Como dizia o poeta Waly Salomão, 'a memória é uma ilha de edição'."

Gostaria de sublinhar: "O espaço da lembrança não suporta a soma de todas as coisas."

Em 'Long-plays', sacode o mofo das lembranças e me desperta uma saudade da vitrolinha portátil vermelha (que tive):

"Ao reviver a experiência, percebi que escutar um LP na vitrola não tem nada a ver com ouvir um CD. Não falo da nostalgia do chiado que arranha (e humaniza) o som pré-digital, da variação de timbres. É uma questão de tempo mesmo. Há o ritual de se tirar o LP da capa, do plástico que o recobre, colocá-lo no aparelho, trazer com cuidado a paleta da agulha até o ponto certo, para que a música enfim comece. O vinil não aceita ser mero pano de fundo. Pede atenção, inclusive para trocar o lado. E silêncio, esse artigo cada vez mais insólito."

Uma vida sem amigos não tem brilho. '20 de julho' fala de amizade, partindo do exemplo dos escritores mineiros (salve!) Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, amigos inseparáveis até a morte. Que puxam da memória do autor aquela noite, na idílica Paraty, cambaleando pelo calçamento ‘pé de moleque’, o instante ímpar em que uma amizade é selada:

"Numa caminhada pós-chopes e pré-ressaca, na primeira edição da Flip, um desses amigos que ajudam a justificar a vida me contou das tristezas que o perseguiam como sombra. Falamos sobre nódoas, cicatrizes. Traçamos projetos. (...) a amizade é, sobretudo, uma forma de amor."

Caymmi disse que ‘quem não gosta de samba bom sujeito não é’. Concordo. O prazer dos botecos e rodas de samba tem seu lugar:

“E a dor que se canta não é só aquela mais comum e profunda: a dos amores que se foram e não se sabe se voltarão. Canta-se também a grana pouca, a nostalgia de um momento, a falta de alguém que já se foi.”

Mas o que todo leitor (imagino) quer saber é do encantamento do autor com os livros, quer sentir que também aquele que escreve tem o devotamento, a paixão, um certo estranhamento, talvez. Solidão. Em 'Livros e Metamorfoses', Moutinho é alguém como nós:

"Quando eu era criança, minha irmã Sandra me apresentou a história de Flicts e tive a sensação de que era aquela cor sem lugar no universo. Mais tarde, eu seria o homem doente de 'Notas do Subsolo', um repugnante inseto, a menina para quem soaria sempre clandestina a felicidade. Esses livros, se não puderam modificar a sociedade, em sentido amplo, me mostraram que eu não estava sozinho. Que havia mais pessoas tateando sentidos, perplexas com o abismo que a vida encerra, dia após dia. E também que é possível sobrevoar esse abismo, observá-lo, descrevê-lo, até mesmo tocá-lo, sem despencar nele.”

São muitos assuntos abordados, coisinhas diárias, fragmentos do cotidiano, em alguma página você vai se reconhecer.

Enquanto preparava esta resenha, percebi que recolhi também pedacinhos de mim. Tirei dos vãos da lembrança histórias gostosas. São sentimentos tão meus, reacendidos pela leitura de Na dobra do dia. Compactei, coloquei moldura e em lugar de destaque. Aqui estão, no blog, para quem quiser ler. Senti-me egoísta, exibicionista, exposta. Tudo bem, já me permito não ter certos medos. A culpa é do Marcelo, este escritor que descobri agora e já peço perdão pelo atraso. Em suas palavras: ”um desses amigos que ajudam a justificar a vida”. Que encanto, que viagem, que delícia de livro! Nada pede, nada exige, tanto a oferecer. Embarcamos com ele, olhamos para trás, para o que construímos, a pegar novo fôlego para o que está por vir. E que venha!

Obrigada, Marcelo Moutinho, pelo arrebatamento. Não foi sua intenção, mas em mim abriu possibilidades. Fui acolhida pela idéia de que, ao som de Renato Russo, ♫ “Não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo, temos todo o tempo do mundo.” ♫

Resenha originalmente publicada no blog: http://www.lerparadivertir.com/2015/07/na-dobra-do-dia-marcelo-moutinho.html
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