Ana 18/09/2015
A maior infidelidade é ser infiel a você mesmo. É se anular ao ponto de se deixar moldar por regras sociais e morais ou até mesmo preconceitos muitas vezes hipócritas. A perda da autenticidade gera a perda da identidade. O livro Henry e June, de Anaïs Nin, na verdade seu diário entre os anos de 1931 e 1932, mostra a mudança não necessariamente de personalidade, mas muito mais de atitude da autora a partir do seu envolvimento com o casal Henry Miller e sua esposa June Mansfield.
Anaïs era casada com o banqueiro Hugo, a quem dizia amar por sua ternura e bondade. Ele era seu porto seguro. Jamais queria magoá-lo, mas não conseguia deixar de querer experimentar a vida. Experiência usada também como fonte de pesquisa para seus livros. Em certo ponto de seu casamento, ambos sentiram a necessidade de ir além, de criar intimidade para que pudessem satisfazer-se. Só que Hugo ainda é muito apegado às normas sociais, está preso. Não consegue se expressar. Não consegue imaginar, mas ela o ama mesmo assim. É o ponto seguro de sanidade. Diz-se fiel a ele, só que a seu modo: “a perfeição é estática, e estou em pleno progresso. A esposa fiel é apenas uma fase, uma condição”.
Ao conhecer o casal Henry e June, muita coisa mudou. Primeiro ela amou a mente de Henry por ser “extravagante, viril, animal, opulento” em seus escritos, “um homem a quem a vida embriaga”. Por seus escritos achava que ele fosse violência. Pouco depois conheceu June, uma paixão arrebatadora, e isso lhe trouxe sensações que jamais tinha sentido antes. Muitas vezes sentiu-se como homem e queria possuí-la e até ser ela. Anaïs mostra que mesmo querendo ser June, não consegue porque tem algo muito dela, como uma digital da personalidade. E que June não tem personalidade “vive dos reflexos de si mesma nos olhos dos outros. Não ousa ser ela própria”. Logo percebeu a força estranha que June tem sobre as pessoas, por sua beleza e pela maldade que carrega consigo em suas mentiras para conseguir o que quer. Em pouco tempo de convivência Anaïs simplesmente idolatrou June ao ponto de dizer que odiava Henry pelas coisas que ele fazia à esposa, não só suas traições, mas também a forma agressiva com a qual falava dela, a forma de tratá-la. Sua brutalidade.
June vai embora e Anaïs passa a conhecer o verdadeiro Henry. Sua brutalidade vem da falta de amor, ao receber amor o homem viril e violento torna-se amoroso, gentil, e ciumento. Super-protetor. Ela o ama. E ama a June, mesmo sabendo de toda sua maldade. Sabe que se completam e que Henry precisa das duas, não há competição. Ela trai seu marido com Henry. E a cada novo estágio de envolvimento, Anaïs vai se perdendo em meio ao físico. Enlouquecendo. Chega a pontos de quase perder sua capacidade de expressão, de imaginação.
Segundo seu primo Eduardo, “a vida de instintos liberados é composta de camadas (…) No final leva a prazeres anormais. (…) Experiências físicas, sem as alegrias do amor, dependem de distorções e perversões para o prazer. Prazeres anormais matam o gosto pelos normais”. E foi assim que aconteceu ao se entregar ao prazer. Tornou-se o prazer pelo prazer. Eduardo traz para a vida de Anaïs a psicanálise por meio do terapeuta Allendy.
Allendy mostra a Anaïs qual é a fonte de suas insegurança. Desmistifica sua bondade, que ele chama de falsa. Alerta para seus jogos literários nos quais ela brinca como criança inconseqüente. E também se apaixona por ela. Primeiro ela desconfia da psicanálise, depois se joga de cabeça nela. E por fim acha que a psicanálise só “consegue fazer a pessoa mais consciente de suas desgraças”. Cai a máscara da bondade e da generosidade desapegada. E injetam nela um pouco de crueldade, de brutalidade e até de banalidade.
Por ser um diário, tudo é muito verdadeiro e extremamente bruto. Sem refinamento, sem revisão, sem lapidação. Pensamentos, sensações e descrições de momentos, relatados pela escritora de forma intensa e sem censura. Confidências diárias, que em certo ponto transformavam tal ação em doença, em vício, como ela mesma afirma diversas vezes durante o livro.
A pergunta que ficou foi: será que mudou muita coisa da década de 30 pra cá? Os tempos são outros. Mais liberação, menos censura, mas será que as pessoas são mais livres? Será que são mais elas? A impressão que dá é que as pessoas continuam cheias de pudores, mas tudo muito velado e mascarado. Que perdemos identidade na liberação alcançada por aqueles que tiveram que lutar e até se martirizar para conseguir. Eles tiveram a coragem de serem autênticos, de fazer a diferença. A impressão é de banalização. Diversas Junes espalhadas aos quatro cantos, fáceis de serem esquecidas. Bonitas por fora, vazias por dentro. Usam a beleza como arma de manipulação e persuasão. Outras tantas Anaïs se martirizando e digladiando pra não se deixarem banalizar e manter sua posição no mundo ou apenas deixando-se levar pelas tendências da moda e se esvaziando para parecer com um modelo de pessoa idealizado pela sociedade. Só que o mundo é outro. Ou será o mesmo? Um mundo que tenta moldar as pessoas de forma padrão.
Neste ponto pego outros trechos do diário. Trechos com os quais me identifiquei. Como no começo onde ela fala sobre o “ímpeto de crescer e viver intensamente”, arraigado à vontade de fazer minhas próprias escolhas. Da forma como penso e sinto o mundo, “porque tudo o mais é uma coisa auto-criada”. Ou quando descreve sua bondade e generosidade desapegada. Sua vontade de ir além. De conhecer a imaginação das pessoas. Não acho que experiências físicas são vitais para o crescimento, são necessárias. As experiências intelectuais, emocionais, reconhecer-se no outro, poder falar e ouvir e sentir sem ser tocado fisicamente, são tão ricas. Talvez até mais ricas. O se abrir para compreender o outro. O criar intimidade para reconhecer-se e partilhar-se. Sei que não sou a única. Vejo meus amigos. Há tanta melancolia. Tanta tristeza.
Ainda somos criados de forma padrão. Especialmente aqui no Brasil nosso ensino não abre brechas para a criança e o jovem pensar e se expressar. O jovem passa sua vida escolar decorando datas, fatos e fórmulas para passar no vestibular, mas se esquece de pensar, de se expressar. Jogam-se nas drogas, entregam-se à violência. Formas de fugir da auto-conscientização e da expressão daquilo que está preso e não sabem controlar. Anaïs cita o querer se drogar para ficar longe da consciência.
A liberação e as experiências físicas sem qualquer sentimento são tão comuns e banais que as pessoas sentem-se vazias. Vazias de amor, de afeto, de sentimento e até de conhecimento. Diversas vezes Anaïs conta sobre suas experiências que ficaram só no físico e tornaram-se cada vez mais freqüentes. O mundo hoje é assim. Muito físico. Tudo para ontem. Informações fragmentadas e experiências superficiais.
Para ser diferente, para ser uma Anaïs moderna, é preciso lutar pelo conteúdo, pelo sentimento, pelo amor. Lutar por experiências que transcendem o físico. Quebrar os padrões da imoralidade. Chega do físico pelo físico. Não estou levantando a bandeira puritana. Castidade, por exemplo, não é não fazer sexo e sim ser fiel ao seu marido ou esposa. Vou mais além, é ser fiel a si, é tentar descobrir quem se é e ser fiel a si, sabendo que sempre há um outro.
site: http://lavagemcultural.wordpress.com/2009/05/09/resenha-do-livro-henry-e-june-%E2%80%93-diarios-nao-expurgados-de-anais-nin-1931-1932-anais-nin/