Érica 22/09/2015Um Elogio a EducaçãoConfesso que quis ler esse livro do T. H. White por causa do filme da Disney, que assisti incontáveis vezes quando era criança. Continuo gostando da história na idade adulta e fiquei curiosa para ler depois que me dei conta de que o filme fora baseado num livro.
SOBRE A EDIÇÃO DA LAFONTE
Que diabo essa editora Lafonte (selo Hamelin) está fazendo? O livro é, a primeira vista, bonito e coisa e tal. Nem gostei do projeto gráfico da capa, para falar a verdade (essa aí acima), parece uma capa de jogo de video-game ou poster de alguma série tipo Game of Thrones. Mas isso pouco me importava. De qualquer forma, a edição aparenta ser bem feita. A folha de guarda e a de rosto são em um tom vinho muito bonito, tem letra capitular e arte decorativa no início de cada capítulo e algumas ilustrações no início e no fim. O final possui um apêndice com informações sobre a obra e os personagens, algumas informações sobre o autor e também sobre os outros títulos da saga O Único e Eterno Rei, da qual A Espada na Pedra é o volume I.
Até aí tudo bem, o que realmente foi de dar vergonha foi a quantidade absurda de erros grosseiros. Ninguém se preocupou em fazer a revisão do texto? Os erros são tantos que dá vontade reclamar com a própria editora (coisa que não fiz nem vou fazer), mas juro que dá vontade de ter alguém para perguntar quem foi o responsável por esse trabalho porco. Nessa edição vc vai ver mais de um erro em uma mesma página! (solárío, cavalaríços, já na página 15!). Vc também vai ler "e esquisito" em vez de "é esquisito", "a. primeira" em vez de "a primeira", etc. etc.
Infelizmente parece que a mesma editora se deu ao trabalho de editar apenas os volumes um e dois da série, esquecendo os outros títulos. O que não faz nenhum sentido.
SOBRE A HISTÓRIA
T. H. White utilizou como base para escrever sua versão da saga do Rei Artur um clássico do século XV, Le Morte d'Arthur, de Sir Thomas Malory (1485).
Wart é um jovem garoto, na casa dos 8-10 anos, é o filho bastardo de Sir Hector, cujo filho legítimo, Kay, é amigo de Wart. Wart não gosta de estudar latim lógica e toda essa coisa teórica, mas gosta da educação prática com falcoaria, equitação e arco e flecha. Principalmente porque dão asas ao seu sonho de se tornar um cavalheiro, coisa que sabe que está destinada apenas a Kay.
Wart é uma boa pessoa, cabeça de vento, corajoso, aventureiro e sonhador. Kay é também uma boa pessoa, embora seja muitas vezes soberbo, egoísta e pouco talentoso para as coisas práticas. Wart adora Kay e sente falta dele quando Kay se acha importante demais para manter amizade com Wart, já que sua nomeação de cavalheiro estava iminente.
"Wart adorava apanhar o feno, e era bom nisso. Kay, que era dois anos mais velho, geralmente ficava muito perto do feixe que tentava pegar e, em consequência, trabalhava duas vezes mais do que Wart com apenas metade do resultado. Mas odiava ser vencido em qualquer coisa e costumava labutar com o maldito feno - que abominava como veneno - até ficar completamente exausto." (p. 13-4)
O filme da Disney transformou o personagem de Kay num vilão facilmente identificável, uma pessoa arrogante e de má índole. Kay no livro é apresentado apenas como uma pessoa de índole fraca e caráter vacilante, alguém que faz o mal e depois se arrepende. Como no final, quando pega a espada da mão de Wart, que havia tirado a espada da pedra, e corre para dizer ao pai que foi ele mesmo quem havia conseguido a proeza. Sua índole boa (mesmo que boa só no fundo) não resiste a um segundo questionamento de seu pai sobre se realmente tinha sido ele a tirar a espada da pedra.
Mesmo assim, Kay consegue ser cruel ao lembrar da origem incerta de Wart toda vez que eles brigam, o que faz com que Wart sempre recue na discussão porque não gosta de ser lembrado o tempo todo de que, por algum motivo, ele é menos importante do que Kay. A palavra Wart, lembra Artur e, em inglês, significa verruga. Kay jamais aceitaria um apelido, pois se considera importante demais para ter um.
A história começa a ficar interessante quando Merlim aparece.
"Havia um poço em frente ao chalé, e o ruído metálico que Wart escutara era provocado por um senhor muito idoso que estava tirando água dali com a ajuda de uma manivela e uma corrente." (p. 30)
Merlim é um mago genial e senil que tem uma coruja falante como bicho de estimação. Ele sabe tudo sobre o futuro, inclusive a grande revelação sobre o menino Wart e seu destino, além de saber também sobre sua origem.
"- Ah, sim. Como eu sabia que o desjejum seria para dois? Foi por isso que lhe mostrei o espelho. Agora as pessoas comuns nascem viradas para frente no Tempo, se entende o que quero dizer, e quase tudo no mundo também vai para frente. Isso faz com que seja muito fácil viver, para as pessoas comuns, assim como teria sido fácil para você juntar os cinco pontinhos em um w se pudesse olhar para eles de frente, e não só de trás para frente e ao revés. Mas eu, infelizmente, nasci no lado errado do tempo, e tenho que viver de frente para trás, cercado por uma quantidade de pessoas que vivem de trás para frente. Algumas pessoas chamam isso de ter segunda visão." (p. 37)
É engraçado pensar que um mago poderoso que não precisa lavar a própria louça - já que ela se lava sozinha - precise retirar água de um poço. De qualquer maneira, esse é Merlim, um mago poderoso e atrapalhado. Merlin é um personagem que acredita no poder transformador da educação. Acredita que a melhor contribuição que ele pode dar ao mundo (o mundo inglês, evidentemente) é educar, por meio da experiência, o futuro Rei. Ele investe na curiosidade de Wart para ensiná-lo a enxergar a natureza e a realidade de maneira ampla, o que faz por meio de magia. Wart é sucessivamente transformado em diversos animais. Essas transformações ensinam Wart a enxergar o mundo sob diversas perspectivas, a perspectiva de um peixe, de uma ave, de uma formiga, etc.
"A melhor coisa a fazer quando se está triste - respondeu Merlin, começando a fumar e soltar baforadas - é aprender alguma coisa. Essa é a única coisa que nunca falha. Você pode ficar velho e trêmulo em sua anatomia, pode passar a noite acordado escutando a desordem de suas veias, pode sentir saudades de seu único amor, pode ver o mundo ao seu redor ser devastado por lunáticos malvados ou saber que sua honra foi pisoteada no esgoto das mentes baixas. Só há uma coisa para isso: aprender. Aprender porque o mundo gira e o que o faz girar. Essa é a única coisa da qual a mente não pode jamais se cansar, nem se alienar, nem se torturar, nem temer ou descrer, e nunca sonhar em se arrepender. Aprender é o que lhe resta. Veja a quantidade de coisas que existem para aprender - ciência pura, a única pureza que existe. Você pode estudar Astronomia no decorrer de uma vida, História Natural em três, Literatura em seis. E então, depois que tiver exaurido um milhar de tempos de vida em Biologia e Medicina e Teologia e Geografia e História e Economia - ora, você pode começar a fazer uma roda de carroça com a madeira apropriada, ou passar cinquenta anos aprendendo a começar a vencer seu adversário em esgrima. Depois disso, pode começar outra vez a Matemática, até chegar a época de aprender a arar a terra."
Outros personagens do livro são o Rei Pellinore, Robin Wood (como a floresta em que vive, e não Robin Hood!) e Little John.
O Rei Pellinore foi criado pelo T. H. White. Ele é um cavaleiro cujo principal objetivo na vida é perseguir a Besta Gemente, que por sua vez tem o único objetivo de ser perseguida pelo Rei Pellinore. Quando ele para de persegui-la ela adoece e ele se sente culpado!
Já Robin Wood é um dos muitos anacronismos do livro. Aliás, os anacronismos são uma atração à parte. É interessante porque mostra que o autor não se levou tão a sério assim para escrever. Tem inclusive uma parte que um dos personagens percebe que está cometendo um anacronismo e ainda comenta isso! O Mago Merlim, claro, é o personagem que mais ajuda a acrescentar anacronismos já que ele próprio é um personagem anacrônico.
A minha parte preferia do livro sem dúvida é a transformação de Wart em formiga. O autor aproveitou para explorar as diferenças entre o mundo simbólico humano e o mundo mecânico e sem individualidade das formigas. É uma das partes mais filosóficas e que proporciona verdadeira reflexão sobre o que é ser humano e o papel da linguagem - em sentido amplo - nisso tudo. Vale a pena ler o livro nem que fosse apenas por essa parte. Me fez pensar se o TH White não teria se inspirado em A Metamorfose, de Franz Kafka para criar essa parte. O trecho simplesmente causa o mesmo tipo de sentimento de angústia por meio da inadequação do personagem ao meio. Só que Wart se diferencia dos demais insetos por possuir uma linguagem muito mais complexa e não poder expressá-la com seus recursos de formiga.
Em um dado momento, Wart quer perguntar para outra formiga "você é feliz?" e não consegue simplesmente porque não existe a palavra felicidade ou o seu conceito. As formigas dividem seu universo em dois opostos simples: feito e não-feito. Suas anteninhas não param de receber mensagens que mais parecem códigos e seu corpo chega a servir de instrumento de refeição para uma outra formiga, que come uma espécie de papa em sua boca. Quando começa a se sentir nauseado e extremamente infeliz, Wart volta a ser menino.
O final, todo mundo já sabe, Wart se torna o rei e Merlin revela que já sabia de tudo.
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