spoiler visualizarMatheus.Ganiko 05/02/2018
A RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E SOCIEDADE PRESENTE NA OBRA DE GÉRARD FOUREZ SOB O PARADIGMA DA ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA
A obra “A Construção das Ciências” de Gérard Fourez foi publicada inicialmente em 1991 e publicada em Língua Portuguesa em 1995 pela Editora da Universidade Estadual Paulista. Aqui, logo de início e antes de qualquer apontamento, já é possível direcionar um questionamento metalinguístico, assim como proposto pelo autor: a sua obra será aqui discutida enquanto uma tradução, logo, seus pensamentos podem ter sofrido algum desvio de fidelidade neste processo.
O autor debruça-se sobre a epistemologia da Ciência ocidental dedicando-se a selecionar cuidadosamente um arsenal de conceitos abrangente e completo o suficiente para instrumentalizar o leitor a refletir de maneira autônoma sobre a prática científica a partir de paradigmas de diversas disciplinas. Ouso afirmar que Fourez foi bastante bem-sucedido no que se propôs ao ponto de fazer-me questionar a intencionalidade de cada palavra que escrevo, ao passo que do conjunto final da análise presente em meu texto, emergirá um discurso que expõe determinada ideologia enquanto oculta outras, queira eu esteja consciente disso ou não.
Além disso, o cuidado empregado na construção do livro, em um primeiro momento, dispensa a necessidade de resumi-lo, tendo o autor adiantado esta atividade, reunindo ao final de cada capítulo as principais ideias que foram previamente esmiuçadas exaustivamente, em processo quase semelhante a uma análise cartesiana, não fosse pela abordagem dialética e a atenção a nunca perder o fio que amarra a rede de todas as suas reflexões.
Desta forma, concentrarei meus esforços em fazer críticas a conceitos que causaram em mim certa inquietação, seja pelo deslumbramento das reflexões propostas, seja pelo incômodo que senti; ou então criticá-la de maneira holística, sem preocupar-me com tentativas de fazer uma listagem “neutra” dos conceitos discutidos.
O autor preocupa-se em expor o caráter humano necessariamente presente na ciência e como ela deve ser compreendida como uma construção histórica e socialmente determinada, estando no contexto ainda atual, submetida aos interesses da sociedade de mercado. Explicita a maneira como um discurso de neutralidade oculta interesses e dissemina a ideia de uma ciência dogmática e absoluta.
Ao professor de qualquer nível de ensino, deve ser dada especial atenção a essa característica do conhecimento científico. A ideia de neutralidade já está presente na cultura que os alunos trazem para a escola enquanto membros de uma sociedade a que é vendida esse pensamento. Existe a impressão de que a ciência é capaz de resolver todas as questões da humanidade e que seus resultados são inquestionáveis. O docente deve dedicar-se a mostrar aos alunos o caráter histórico-social de produção de conhecimento, como ele é efetuado com a inclinação de responder a um interesse prático emergente de um problema presente em uma sociedade historicamente determinada.
Quando da intenção de examinar minuciosamente determinada questão, como por exemplo, o conceito de normalidade, o autor expõe diversas explicações para tentar dar conta de um fenômeno. Observando-se tal descrição, é possível perceber como ele rompe com explicações dualistas dos fenômenos, bastante presentes no senso comum e também no consciente coletivo de alunos do Ensino Básico.
A eles são dadas explicações que frequentemente permitem dois pontos de vista, como se não houvesse outras maneiras de explicar um fenômeno. Essa omissão poderia ser explicada pelo desânimo infeliz de docentes que depositam baixas expectativas na capacidade intelectual de seus alunos em lidar com explicações multifatoriais para os fenômenos; pela reprodução de materiais didáticos limitados; ou até mesmo pela formação docente carente de explicações que não as dualistas. Tendo como foco o Ensino de Ciências, é de extrema importância acostumar os alunos a analisarem os fenômenos propondo diversas explicações, expandindo a capacidade reflexiva de indivíduos que um dia poderão vir a tornarem-se cientistas.
Não deve ser ignorado o enfoque feminista que o autor faz uso quando apresenta exemplos para seus conceitos. Mesmo depois de mais de 20 anos, a sociedade continua essencialmente patriarcal, pelo menos assim a é a sociedade brasileira, e essa característica presente no texto é uma avanço na luta de igualdade de atribuição de valores à mulher e ao homem.
A principal contribuição do livro para mostrar o processo de produção do conhecimento científico é mostrar que todo cientista, enquanto ser social, que possui um referencial teórico particular construído ao longo de sua vida, possui uma maneira única de observar e propor explicações aos fenômenos. Dessa forma, as explicações científicas são meras representações da realidade, estão longe de ser a verdade absoluta e, no máximo, são uma aproximação da totalidade do fenômeno. Assim, existe uma variedade de verdades que podem ser mais ou menos apropriadas para explicar as mais diversas circunstâncias.
Ao cientista em formação e ao docente que está formando estes cientistas, é de intrínseca necessidade a compreensão do modelo de construção de ciências apresentado por Fourez. É preciso que o profissional enquanto produtor de conhecimento científico esteja
ciente das variáveis que influenciam essa produção, e como ele também está submetido a forças coercitivas maiores, dentro de uma sociedade regida pela economia.
O autor diversas vezes faz referência a “Deus” ou a religião de maneira interessante ao passo que não opõe esta ao pensamento científico, mas sim mostra como ambos podem conciliar-se enquanto representações que buscam explicar a realidade.
É dedicada uma parte do livro para caracterizar a classe dos cientistas. Provenientes da classe média, alerta-se para falta de preocupação política de tais atores. A principal consequência da despolitização é atribuição de distanciamento da prática científica da rotina do pesquisador com as questões que estão em voga na sociedade. O cientista aliena-se sobre a qual força coercitiva está subordinado, contribuindo para a manipulação dos sistemas materiais e intelectuais de ciência.
Uma proposta para resolução desse problema é abordar questões políticas no ensino de ciências, aproximando os produtores do conhecimento em potencial com os interesses que emergem dos diferentes grupos de uma sociedade de mercado heterogênea.
Fourez remonta ao surgimento da burguesia na Idade Média para explicar o aparecimento da universalidade do discurso científico e demonstra que ele só existe se antes houver uma cultura científica capaz de interpretá-lo, corroborando para a introdução de tal cultura no ensino.
Acredito que a discussão mais interessante do livro apareça na questão do poder que a ciência pode ter nas decisões que são tomadas na sociedade e a quais atores tal poder decisivo deva ser confiado. Fala-se no modelo tecnocrático, em que as decisões devem limitar-se a especialistas que dominam os conhecimentos científicos; no modelo decisionista, em que o especialista consulta o desejo do ator social ordinário não-especialista, para então contribuir para a melhor decisão para este último; e ainda em um modelo pragmático-político, em que ambos atores estabelecem um diálogo contínuo e negociações para culminar em decisões embasadas em resultados científicos, mas que vão de encontro aos interesses dos cidadãos.
Concordo com o autor quando ele propõe que nas diversas circunstâncias do cotidiano deva ser adotado um diferente modelo de decisão que seja mais apropriado. Entretanto, acredito que as sociedades tendem a ser tecnocráticas quando o ensino de ciências não é capaz de promover uma alfabetização científica adequada. À medida que esse ensino vê sua qualidade ser catalisada e instrumentaliza os cidadãos com uma formação científica e reflexiva, que desenvolva habilidades de questionar a ordem a partir de resultados científicos,
o modelo que tende e predominar, mas sem eliminar totalmente os outros, será o modelo pragmático-político. Somente assim, haverá de fato uma democracia, em que todos são capazes de discutir e refletir a cerca dos resultados apresentados por especialistas, sem relação de dominação intelectual.
É interessante notar a maneira como Fourez está preocupado em estabelecer um diálogo com o leitor, propondo reflexões, fornecendo subsídio intelectual, mas sem apresentar uma resposta pronta. É claro que, de certa forma, ele já direciona o pensamento através da escolha dos conhecimentos que optou por fornecer. É ainda catártico perceber como tal estratégia de escrita, intencional ou não, culmina justamente na proposta final do livro: mostrar como a ciência pode fornecer subsídios intelectuais para decisões éticas, por vezes de maneira reduzida, mas que apesar disso, a decisão final ainda cabe a um ser humano e cujas forças que atuam no momento pontual de sua decisão podem variar enormemente e até mesmo pouco estar relacionada com os argumentos científicos previamente selecionados, enaltecendo, portanto, a importância para que este ser humano seja um indivíduo alfabetizado cientificamente.