Eduardo 03/11/2009Ótimo texto (uma resenha sobre o texto - eu li o livro - e sobre a peça, a qual assisti uma montagem em Joinville/SC, das Cias. Rustico e La trama.)A história da peça é o que eu costumo chamar de soco no estômago: à sua frente, o ser humano, debatendo-se em sua angústia, agarrando-se em fiapos de sonhos futuros bem frágeis.
Ambos são carregadores de peso no Mercado Público. Miseráveis, dividem um quarto numa espelunca. Esse é o único cenário da peça. Ficamos sabendo dos outros eventos através das conversas dos dois, todas elas são à noite alta, quando os dois voltam da lida diária. Em cena o homem e seu desespero.
A esses atos de desespero, a platéia reage muitas vezes com risos. Como se fosse engraçada a desgraça de Paco e de Tonho. Um, querendo incomodar o outro, solta tiradas irônicas para o outro: a platéia cai na risada. Se ela se colocasse no lugar do personagem, sentiria - ao invés de graça - muita dor. Desespero, solidão, angústia. Nunca compreendemos isso no coração dos outros. Só quem sente sabe.
O desespero dos dois personagens se concentra no sapato de Paco, que por isso ganha muita simbologia na peça. Paco desde que mostra seu "pisante novo" a Tonho, passa a dedicar cuidados extremos e obssessivos ao sapato. Empolga-se ao falar dele (único objeto de valor que ele possuía), a ponto de "idolatrar" o próprio sapato. Além disso, provoca Tonho, insistindo incessantemente que o companheiro de quarto tem inveja de seu calçado, já que o de Tonho é todo feio e furado. Ao mesmo tempo, Tonho insiste (também o faz incessantemente) para que Paco empreste o seu sapato a ele, nem que seja por um dia, pois acredita que basta um bom sapato para tornar-se apresentável por aí, e assim conseguir um emprego melhor (funcionário público é o seu sonho). O absurdo da situação se concentra na insistência dos dois: ambos falam muito do sapato. Tonho insiste no pedido de empréstimo. Paco insiste nos gracejos, afinal, ter o sapato e não emprestá-lo a Tonho significa impedí-lo de crescer. A sorte de Tonho significaria a tragédia de Paco, pois este ficaria para trás, totalmente só. Daí a explicação para a constante raiva de Paco e seu desejo de que Tonho só tenha infortúnios. Ele pode afundar, mas que seja agarrado a outro, a Tonho. No fundo, Paco tem medo.
Paco mostra em sua fala que se entregou à realidade: apesar de dizer que toca flauta muito bem, e que se conseguisse uma poderia se dar muito bem na vida como músico, ele ao mesmo tempo, faz pouco para mudar tudo isso: concentra todo os seus esforços em diminuir Tonho. Não quer perdê-lo. Não quer ser perdedor. Paco se entrega: quer ser criminoso. Perigoso. Temido pela crueldade. Enquanto isso, Tonho resiste o mais que pode à toda forma de pressão do mundo. Abaixa a cabeça para humilhações, vai seguindo. Vai guardando. A angústia nada mais é do que esse doloroso guardar.
Ao final da peça, os dois numa tentativa de ganhar dinheiro, cometem um assalto. O desfecho estava escrito nas ações dos dois. Paco continua a se mostrar elétrico, com sua opressão chata, com a intenção de fazer o outro sofrer para sempre ali. E Tonho louco para sumir daquele lugar, daquela vida. Mas não consegue. Numa cena final eletrizante (a peça é toda de dialógos rápidos que te fixam na poltrona) vemos que Paco consegue seu objetivo: Tonho se rende àquilo. Mas Paco não vence. Ficam as duas tragédias. Não há espaço para vitórias. O destino dos personagens se reconfigura. A peça termina e a tragédia continua. Continua dentro dos espectadores/leitores. Diante deles, estavam eles próprios: o homem. O ser humano e suas baixezas. Não é comédia, não. A desgraça alheia é a nossa desgraça.