Neto Guimarães 11/04/2014
Tente novamente mais tarde.
Já pensou se algum dia os homens deixassem de existir e as árvores crescessem sem nada para podá-las? Em quanto tempo tudo que o homem levou milênios pra construir estaria abaixo das copas, do cheiro doce da grama?
Eu faço faculdade. Saio de casa todos os dias para ir à aula, com meu caderno de anotações, alguns textos xerocados e uma vontade de ficar pelo caminho. Há tempos que a faculdade não é mais um sonho. Há tempos que virou uma roleta russa. Eu mesmo girei, girei e caí em meu curso.
E se você vier me dizer "faz o que tu gosta, é melhor", eu tenho uma resposta na ponta da língua: o que eu gosto não se aprende em faculdade. Nem na vida. Eu não gosto das coisas a ponto de querer lutar por elas. Estou fazendo o curso que faço porque caiu na minha porta e é mais fácil pra mim aceitar do que rodar o universo acadêmico todo para encontrar algo que me "fascine e me faça levantar feliz todos os dias".
Será que já ocorreu na cabeça de mais alguém que a gente tá preso?
Nós temos a liberdade de escolher, mas não a de concretizar. E já pensou que louco você querer escolher uma opção que não existe ainda? Já pensou que louco você não se adequar a nenhuma das cadeiras da faculdade por natureza?
Não, eu não sou o revolucionário. Eu vou pra aula, estudo, ganho bolsa e faço estágio, pois assim as coisas ficam mais fáceis. Mas isso não impede que quando eu deite minha cabeça em meu travesseiro velho, liberto das agonias suburbanas, eu pense que há alguma coisa errada com tudo isso. O mundo parece que tá errado. As coisas que nos fazem acreditar, o amores que nós somos obrigados a ter.
"Afinal, eu parto porque não posso deixar de partir. - como um carneiro indo ao matadouro"
Poema "Canção Urbana", de Luís Carlos Guimarães
E Sartre me ensinou um pouco disso. Por mais livre que a gente esteja, a gente tá preso dentro da liberdade. Estamos condenados a sermos livres. O universo sempre vai dar um jeito maroto de meter a mão no meio dos sonhos de quem tem, no meio dos orgasmos de quem gosta e no meio do resultado da final do campeonato europeu. A copa do mundo está aí, os desmoronamentos esquecidos pela população nos morros do Rio de Janeiro, o adolescente que assassinou as crianças na escola do Realengo. Columbine.
Tudo segue um curso. O curso do erro, da prisão na realidade e das limitações do próprio homem como ser facilmente aliciado.
Tudo segue nos mesmos moldes, sempre. Até mesmo as maiores revoluções.
"Como todas as manhãs, Mathieu pensava "
E eu pareço errado em me sentir mal pelo estacionamento do acaso perante nós. São duas da manhã e eu estou me sentindo errado por pensar assim. Me olhar no espelho e ver que eu não tenho planos mirabolantes, não tenho desejo de transar com aquela guria gostosa da minha turma e nem ao menos sonho em ter uma família. Olhar no espelho e saber que eu não sou um cidadão decente, comum e me sentir mal. Tudo isso porque eu penso demais, leio demais e vejo as entrelinhas das artes.
E porque não ser um homem comum apenas? Ir pra faculdade, tirar boas notas e deitar na cama sem culpas e sem ressentimentos. Deitar na cama e sonhar com uma família, com um carro do ano e com um piquenique com a minha futura sogra. Tudo isso porque usei a capacidade peculiar do ser humano? Se esse é o diferencial do ser humano quanto ao resto dos animais, por favor, me transformem num boi e me matem para saciar seus vícios malévolos, que eu me sinto mais útil.
"Exausto. Completamente exausto. Dantes, eu carregava os dias às costas, fazia-os passar de uma margem para a outra; agora são eles que me carregam"
Admiro os muçulmanos, os kamikazes de alguma das guerras das quais eu esqueci o nome. Admiro seitas ocultistas que dão um sentido para a morte baseadas numa fé coletiva. Parece-me mais sensato do que acordar todos os dias e ser um cidadão comum.
No segundo volume da trilogia "Os caminhos da liberdade", Jean-Paul Sartre nos mostra a flacidez da vida perante as obras do acaso. De como nosso papel na sociedade pode ser interferido pelo papel dos outros. Todos nós somos seres humanos, sujeitos à fraqueza do nosso sistema socio-econômico-cultural. Num enredo entrelaçado por várias histórias, Sartre narra quase que cinematograficamente um contexto diferente do período entre as duas grandes guerra. Especificamente, o período que se desenrolam os acontecimentos que dão impulso para o estopim da guerra.
Totalmente diferente do primeiro volume, Sartre apenas trás apenas os personagens de "A idade da Razão", como que para dar um desfecho para a história, acalmar o leitor que queria as tramas do primeiro livro resolvidas e para aproveitar da diversidade socio-biológico-cultural dos personagens perante os acontecimentos políticos e humanistas que degringolam ao longo das páginas.
Não é uma leitura muito fácil. Admito que minha edição em português de portugal e mal editada não contribuiu muito, mas Sartre invoca um estilo inovador de escrita (para mim): pula de uma cena pra outra sem dar aviso prévio. Sem pular um parágrafo, iniciar um novo capítulo ou, às vezes, nem sequer usar um ponto final. Começar uma frase na Espanha e terminar em Paris é um pouco complexo pra quem está acostumado com narrativas que segue uma linha de raciocínio mais literal e menos cinematográfica.
Os personagens de "A idade da razão" aparecem como plano de fundo de uma sacada maior. Um tanto moldados e com outras razões para viver, eles não são o foco principal da obra, ao contrário do primeiro livro, que tem foco na resolução do problema de Mathieu/Marcelle.
Mathieu aparece em Sursis mais resignado com a sua fraqueza em cumprir a promessa feita aos dezesseis anos. Aparece como mais velho e maduro, como quem aprendeu algo com os acontecimentos passados. Como um homem na idade da razão.
Ivitch, a musa que iluminou minha leitura no primeiro livro me fez passar po momentos de angústia na espera cansativa de que ela aparecesse logo. Mas, como era de se esperar, ela me surpreendeu bastante e fez o que tinha de fazer.
Além das figurinhas repetidas do primeiro livro, temos a aparição de novas: Gros-Louis, Philipe, Pierre, Maud e muitos outros, personagens que aparecem claramente para mostrar os vários tipos perdidos pela nossa humanidade e suas devidas posições quanto à fraqueza perante à liberdade de nosso mundo.
Com um enredo que flui como um puxar de gatilho, Sartre me atingiu. Tenho medo de ler o terceiro volume e receber um terceiro tiro no peito.
(spoiler da minha vida: eu li o terceiro volume. E foi um tiro no peito [risos sartrianos])
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