@vaisetratarleitora 29/08/2022
Agora o mais polêmico álbum de Hergé
Esse álbum é polêmico pelos mesmos motivos base do anterior (essa é a segunda história de Tintim), ou seja, o autor (jovem na época, cerca de 22 anos) tinha acesso apenas a informações enviesadas e carregadas do preconceito e da visão colonialista da época, como os arquivos do Museu Colonial Tervueren e o livro "Les silences du colonel Bramble" (André Maurois) um romance de sucesso da época de onde ele tirou uma das cenas de caça do álbum. Vale dizer que na década de 60 ele falou sobre como se arrependia de ter criado a história sob esse viés. A história presente nesse álbum foi publicada pela primeira vez entre 1930 e 1931, no jornal católico Le Vingtième Sciècle sobre o qual falei na outra resenha.
A fonte das informações sobre esse álbum, eu retirei do site https://www.tintimportintim.com/2010/07/tintim-no-congo.html
Hergé planejava uma história sobre Tintim nos Estados Unidos, mas o abade diretor do jornal o incentivou a fazer antes uma história para ensinar aos jovens sobre como o colonialismo era incrível.
Na época, o Congo era uma colônia da Bélgica, e por isso exploraram o lugar até não poder mais e só pararam após o extermínio de metade da população local (que era em cerca de 20 milhões de pessoas), pois isso chamou a atenção de vários países que interviram (mas mesmo assim ainda continuaram sob a tutela da Bélgica por um bom tempo). Apesar de na época se chamar Estado Livre do Congo, de livre eles não tinham nada, e só foram realmente ganhar a sua liberdade há cerca de 60 anos atrás quando então passou a ser a República Democrática do Congo.
Essa história tinha o intuito de ser uma propaganda, pois o Congo, sendo 80 vezes maior do que a Bélgica precisava de muita mão-de-obra, e o objetivo era esse, mostrar o país e incentivar os jovens belgas a irem pra lá trabalhar. O tempo todo o personagem de Tintim é tratado com deferência pelos locais, a história mostra como os brancos eram úteis e bondosos para com aquele povo tão atrasado e simples, levando até eles educação e religião, o famoso Complexo do Branco Salvador, infelizmente muito presente e difundido na época. O padre é um personagem muito bondoso e carismático a ponto de se tornar muito difícil não simpatizar com ele e com seu bom coração ao longo da história, pois ele ajuda Tintim várias vezes, mas aí a gente lembra que o objetivo era esse e com certeza funcionou na época, se funciona ainda hoje mesmo com todas essas informações.
Em entrevista pouco antes de morrer, Hergé assumiu seu erro: "Da mesma maneira quando desenhei Tintim no País dos Sovietes, ao desenhar Tintim no Congo eu estava alimentado de preconceitos do meio burguês no qual vivia... Era 1930. Conhecia deste país apenas o que as pessoas contavam na época: 'os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!', etc. E desenhei os africanos de acordo com estes critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica".
As polêmicas envolvendo esse álbum começaram cedo, e após passar por uma redução de tamanho (de 100 para 62 páginas), revisão da história e de diálogos (retirando um pouco do tom paternalista e colonialista) em 1946, ser redesenhado para um traço mais parecido com o que conhecemos e colorido, a veiculação desse álbum foi suspensa no final dos anos 1950.
Em 1963 Hergé escreveu uma carta pedindo a republicação da obra, justificando seus desenhos como caricaturas, assim como ele havia feito com outros personagens em outros álbuns a essa altura já publicados. Isso não aconteceu logo, mas seus fãs comemoraram e apoiaram esse pedido, inclusive seus fãs na África.
O que ajudou na efetiva veiculação do álbum novamente foi a publicação de um artigo em uma revista do Congo chamada Zaire em 1969, onde a história foi muito elogiada e pedia a republicação do álbum a nível mundial. O artigo dizia que "se algumas caricaturas do povo congolês em Tintim no Congo fazem rir os brancos, eles fazem rir abertamente os congoleses, porque os congoleses encontram razões para isso na forma como o homem branco os via", ou seja, eles achavam engraçada a visão estereotipada que os brancos da época tinham sobre o seu país e tudo bem. Confesso que de certa forma, concordo com a republicação, acho importante que esse tipo de visão da época fique registrada para que se saiba que isso aconteceu e que isso não é certo. Acho importante conhecermos os erros do passado para que possamos aprender com eles. Inclusive acho que seria legal se nas edições mais recentes do álbum, houvesse um texto explicando e falando sobre essas problemáticas, contando a história dos bastidores.
Agora falando da história em si, achei melhor do que a anterior, onde tinha muitas situações impossíveis e bizarras. Não que nessa também não tenha, mas o tamanho menor com 62 páginas, fica menos repetitivo e cansativo. A forma de falar dos congoleses na história é estereotipada, assim como sua aparência física, suas roupas, e tudo que era referente a eles. São em geral personagens inocentes, ingênuos e bondosos, sempre prontos a reverenciar o branco salvador que os ajudou com seus problemas e torná-lo seu modelo de liderança e de conduta.
Outra coisa que me incomodou demais na história foi a bizarra matança e maus tratos aos animais selvagens retratada. Tintim extermina uma manada de Antílopes por acidente (quando queria apenas um para comer), explode (literalmente, com dinamite) um rinoceronte (cena que foi alterada após a publicação na Escandinávia em 1970 pelo choque que causou e as versões publicadas no Brasil pela Companhia das Letras possui a cena alterada e não a original) apenas para ter seu chifre como troféu, mata um elefante apenas para pegar suas presas, maltrata um tigre, captura um leão, mata um macaco e veste sua pele apenas para conseguir de volta a arma dele que outro macaco havia roubado. São cenas tão grotescas, tão sem sentimento, sem pensamento pelas vidas tiradas, como se fossem nada, que me incomodou bastante e com certeza mostra que eles encaravam como se fosse nada a dizimação dos recursos naturais dos países colonizados.
Enfim, pra terminar essa resenha já gigantesca, apesar de todos os pontos ruins, o desenrolar da história é bom e acho que por retratar a visão da época, sem dúvida merece ser lido e debatido.
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