Matheus Penafiel 24/04/2017
Ouro e fezes
Lendo uma lista dos dez clássicos da literatura erótica, no Diário do centro do mundo, uma frase me chamou a atenção: “[Nelson Rodrigues] escreveu folhetins com os companheiros de redação olhando pelas costas onde iam dar as tramas”. Em outras palavras, Paulo Nogueira, quem compila a lista, está sugerindo que, ao escrever suas histórias, o autor sabia tanto quanto seu leitor, também ele curioso sobre qual o desfecho de suas narrativas. Fiquei imaginando que interessante exercício literário poderia ser esse, em que primeiro recebe os elementos necessários que irão compor o conto ou o romance, sejam personagens, ambientes, objetos, e depois deve rearranjá-los em uma trama coerente. Fiquei me perguntando se O casamento, de Nelson Rodrigues, não foi escrito assim, olhando o romance pelas costas.
A crença se justifica pela brevidade dos capítulos, regulando o mesmo tamanho dos contos de A vida como ela é…. A maioria dos elementos que comporão a narrativa são disponibilizados desde os primeiros. O personagem principal Sabino Uchoa Maranhão, ou apenas Sabino, como é tratado na maior parte do romance, irá casar sua filha caçula e predileta, Glorinha, dentro de dois dias. A narrativa muitas vezes é intercalada com o pensamento distante dos personagens, quando, por exemplo, ao se recordar de uma de suas visitas ao prostíbulo, Sabino relembra a morte do pai.
Quando chega ao escritório da imobiliária da qual é presidente, Sabino é informado de que o dr. Camarinha, ginecologista da família e portanto de Glorinha, vai visitá-lo com urgência. Ansioso em seu escritório, Sabino liga para a mulher, Eudóxia, pergunta como estão as coisas em casa, e ela responde que Glorinha vomitou. Essa é a primeira curiosidade que Nelson Rodrigues tenta nos cravar no coração: será que a visita do dr. Camarinha é para dizer que sua filha não é mais virgem e que está grávida? O questionamento é reflexo da época e sociedade abordados no romance, o Brasil e o Rio de Janeiro conservadores de 1966.
Porém, o que tem o doutor a dizer para Sabino é outra coisa: viu seu futuro genro, Teófilo, beijando seu assistente Zé Honório na clínica. Faltando dois dias para o casamento, Sabino, na condição de chefe de família, tem que lidar com a traição de seu genro, questão secundária, aliás, e a possível “pederastia” dele, esse sim, visto pelo personagem como problema. Leva adiante o casamento, para o qual convidou metade do Rio de Janeiro e cujo um dos padrinhos era Ministro, ou dá fim a ele, pondo fora seu investimento? Em agonia, Sabino consegue exclamar: “Sejamos práticos. E o escândalo? O senhor já pensou no escândalo? O que é que eu vou dizer?”.
Isso lembra alguns versos de Gregório de Matos Guerra, de Preceito 5:
Era dourada parece,
Mas não é como eu a pinto,
Porque debaixo deste ouro
Tem as fezes escondido.
Um fato interessante sobre o romance é que ele foi proibido de circular durante a ditadura militar presidida por Castelo Branco, pois atentava contra a instituição da família. A revista literária da TAG, que acompanha o kit do mês de agosto no qual me foi enviado o livro, nos sugere com lucidez clarividente e precisão histórica que, caso queiramos conhecer os tabus de uma sociedade, investiguemos aquilo que ela proíbe. Se reconstruirmos a sociedade carioca da época pelas polêmicas levantadas pelo romance, perceberemos que eram tabus o adultério, o incesto, a homossexualidade, a virgindade e o sexo pré-marital.
Nessa sociedade, contrastando com a figura do padre, pode ser analisada a compreensão da figura do ginecologista. O próprio Sabino diz que deveriam os “ginecologistas usar batina”. A razão, possivelmente, é a de que são eles os guardiões dos piores segredos encarados pela sociedade: os sexuais. Lembro-me do padre Ángel, em O veneno da madrugada, que no romance garantia que aquilo que denunciavam os misteriosos pasquins distribuídos à noite não mereciam importância. E quando questionado por um médico sobre tamanha certeza, respondeu categoricamente:
– Eu o saberia pelo confessionário.
Essa certeza também é posta em dúvida pelo médico. Já no enredo de Nelson Rodrigues, na qual nada seria confessado ao padre e, mais do que isso, a própria virtude do padre é posta em questão, os segredos são guardados pelo ginecologista. Alguns deles são escondidos do leitor pelo dr. Camarinha por muito tempo, o que aprofunda nossa ansiedade de terminar a história.
É interessante de se observar também a relação repressiva encarnada nos pais. Sabino, pai de Glorinha, exigindo de forma velada a virgindade da filha. Dr. Camarinha querendo que seu filho Antonio Carlos tome jeito na vida e não se mantenha como gigolô. O moribundo pai de Zé Honório reprimindo a sexualidade do filho. Nos estaria Nelson Rodrigues apontando as consequências de uma sociedade centrada na figura do patriarca?
É certo que Nelson Rodrigues é um exímio narrador. Se o leitor quiser pôr à prova a constatação sem ler o romance, poderá pelo primeiro conto de A vida como ela é…, O inferno. Será surpreendido ao final do conto, respirará exasperado e tentará reconstruir a narrativa mentalmente, se não voltar a lê-la, para procurar entender. Uma qualidade bastante treinada se de fato o autor tiver escrito o romance olhando pelas costas. Algumas coisas, porém, parecem inverossímeis, como o excesso de violência física ou verbal empregado pelos personagens. Ou seria inverossímil apenas nos dias de hoje, cinquenta anos depois?
Infelizmente, O casamento não me foi um romance surpreendente, talvez pela distância histórica, talvez pelos enredos pouco críveis a mim. Nelson Rodrigues me parece mesmo exagerado no romance: não traça apenas um contraste entre o discurso moralista e os atos dos oradores dos bons costumes, mas o faz de tal modo que não haja personagem sem um grande pecado implicado em seu histórico. Se uma comunidade de santos púdicos nos pareceria absurdo, podemos nos fiar na existência de uma sociedade de grandes pecadores, sem que se salve um? Me parece fantasioso demais, mas talvez seja o imaginário de Nelson Rodrigues manifestando o que ficou imortalizado em uma espécie de aforismo: “Se conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém se cumprimentaria”.
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