Klotz 04/12/2018
O CASAMENTO - Nelson Rodrigues - Editora Nova Fronteira
Nelson Rodrigues ficou conhecido por Anjo Pornográfico, também título do livro com a biografia escrita por Ruy Castro.
Foi o maior dramaturgo moderno brasileiro. Por ser jornalista polêmico tanto nas reportagens para as páginas policiais quanto nas coberturas esportivas, Carlos Lacerda que recém fundara a editora Fronteira, encomendou um romance.
Foi a oportunidade para Nelson Rodrigues escrever “O casamento”.
Ao convidar Nelson, Lacerda acertou na intenção da provocação desejada. Tanto que dois meses vendeu duas edições totalizando oito mil exemplares. Mas era 1966, início da ditadura e consequente censura. “pela torpeza das cenas descritas e linguagem indecorosa em que está vazada” foi considerada um atentado contra a organização da família. Os poucos exemplares não vendidos foram recolhidos nas livrarias.
Na atualidade, o grande público reconhece a obra de NR pelo seriado “A vida como ela é” baseado em contos com histórias tragicômicas envolvendo adultério, morte, desejos reprimidos e amores passionais.
Se eu tivesse que definir a temática de NR em poucas palavras diria que detona a hipocrisia misturando sexo e morte e acrescentando mentes e ações perversas em todos os personagens.
Ao contrário do Facebook, seus personagens são escatológicos: fedem, cospem na cara de quem amam, tem coriza, ataques epilépticos e outras inúmeras torpezas como se todos fossem vilões.
Vi duas ou três peças encenadas e tive o um imenso prazer ao ler a biografia produzida por Ruy Castro. Mostrou-se de inteligência diferenciada, extremamente criativo, nascido e criado no meio jornalístico.
Em comentário lido na biografia consta que suas peças “são obras pestilentas, fétidas, capazes por si só, de produzir o tifo e a malária na plateia.”
Neste único romance, a história se passa nas 48 horas que precedem o casamento de Glorinha, filha predileta do empresário Sabino.
O conflito se inicia quando Sabino é informado pelo ginecologista da esposa e filhas que o noivo, Teófilo, foi visto beijando outro rapaz, o seu assistente, Zé Honório.
Mas, de sentimento religioso forte, o pai está convicto de que casamento não se adia nem se cancela.
A partir deste mote, descobrimos um catálogo de taras, não sobra pedra sobre pedra, encontramos a podridão em todos os envolvidos: pai, mãe, ginecologista, filho do ginecologista, padre, noiva, amiga da noiva, irmãs da noiva, secretária de Sabino...
“Em Copacabana a pederastia pingava do teto, escorria pelas paredes”. Mostra o grande frasista que era NR. Segue um recorte onde podemos observar a maestreza nos diálogos, ritmo, linguagem rapidez na evolução das ações.
“Do padre, cuja eloquência tinha mais dourados do que um altar barroco”.
“Zé Honório era um rapaz de vinte e poucos anos, rosto fechado, inescrutável e uma tristeza de chamar a atenção.” Enquanto “Teófilo tem sempre uma pele de quem lavou o rosto há dez minutos.”.
Mais do que frasista, tem texto denso, forte e pesado.
Zé Honório, o assistente, decide se vingar do pai.
“Entram no quarto. É uma penumbra lunar de fundo submarino. Glorinha, crispada, apanha a mão de Maria Inês. No meio da parede, uma vitrina de santa, voltada para a cama. E tinha uma pequenina lâmpada triste como a luz do círio. Na cama antiga, estava o doente. Era um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Eo resto da vida estava no espanto de cada olho.
E, súbito, o Zé Honório aperta o comutador. Uma luz forte, cruel, enche o quarto. E, com a luz até os cheiros da agonia e da morte tornaram-se mais nítidos e obsessivos.
Antônio Carlos, Glorinha e Maria Inês se juntam num canto. Zé Honório, magro e de sunga, faz, lentamente, a volta na cama. (A agonia tem cheiro de excremento).
O velho fecha os olhos. Tem cílios de piaçava como os defuntos.
O filho põe as duas mãos na beira da cama.
Diz om voz estrangulada:
— Abre os olhos, homem.
Nada. Glorinha pensa no pai que ela nunca vira de pijama, nem sem meias. Não conhecia os pés do pai. Sabino dormia de meias, como se achasse indignos próprios pés.
O velho continuava com os olhos fechados.
Aquilo exasperava o filho:
—Velho, você não está dormindo. Não está dormindo, nem morreu. Eu sei que tu vê e ouve. Então escuta. Escuta o que eu vou te dizer. Esperei 15 anos por esse momento. Está me ouvindo, velho?
Deita-se na cama ao lado do doente. Fala ao seu ouvido.:
— Aqui tem duas meninas. Eu nunca, nunca, quis ser homem. Durante toda a minha vida, eu quis ter xoxota como as meninas, como todas as meninas. Escuta o resto.”
E dali parte para a crudelíssima vingança.
Nas palavras do autor, é que “em cada família, há trevas que convém não provocar. Quantas casas, quantos lares são varridos de adúlteras, pederastas, incestuosos, epilépticos?”
É impossível ler um capítulo após o outro. Falta ar ao leitor. É muita loucura por parágrafo.
Todos temos segredos que ocultamos com todas as forças. Os personagens de Nelson escondem podridão. Acho que a vale a pena para conhecer a escrita do autor. Nenhum brasileiro pode ficar sem conhecer o estilo deste autor.
Seguem algumas frases de Nelson Rodrigues
A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual.
A dúvida é autora das insônias mais cruéis. Ao passo que, inversamente, uma boa e sólida certeza vale como um barbitúrico irresistível.
A plateia só é respeitosa quando não está a entender nada.
A televisão matou a janela.
Amar é dar razão a quem não tem.
Amar é ser fiel a quem nos trai.
Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua.
Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.
Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário.
Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos…
Na mulher, certas idades constituem, digamos assim, um afrodisíaco eficacíssimo. Por exemplo: — 14 anos!
Nada nos humilha mais do que a coragem alheia.
Nem toda mulher gosta de apanhar. Só as normais.
Toda mulher gosta de apanhar. Menos a neurótica. O homem é que não gosta de bater.
O brasileiro, quando não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte.
O casamento é o máximo da solidão com a mínima privacidade.
O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca.
Os homens mentiriam menos se as mulheres fizessem menos perguntas.
Se os fatos são contra mim, pior para os fatos.
Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.
Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante.
Toda coerência é, no mínimo, suspeita.
Toda unanimidade é burra.
A adúltera é a mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela.
Não existe família sem adúltera.
Aos 18 anos o homem não sabe nem dizer bom-dia a uma mulher. Todo homem deveria nascer com 35 anos.
Nunca o brasileiro foi tão obsceno. Vivemos numa fase ginecológica.
Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.
Sem sorte não se chupa nem um Chicabon. Você pode engasgar com o palito ou ser atropelado pela carrocinha.
Subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.