Paulo 15/04/2024
Obra-prima
Li a edição de bolso da Saraiva, que peca por não trazer as três partes do livro divididas em capítulos.
A primeira parte, intitulada “Os dois poetas”, conta a história dos amigos David Séchard e Lucien Chardon, residentes na cidade provinciana de Angoulême. Ambos eram muito diferentes: David era trabalhador e pé no chão, enquanto Lucien, muito belo, era vaidoso e ambicioso ao extremo.
David trabalhava na gráfica que fora de seu pai, um velho avarento que o explorava por meio de um contrato leonino pelo qual lhe repassara a tipografia e suas máquinas. Lucien era um poeta de talento promissor, então com 22 anos, que ascendeu socialmente na cidade interiorana devido a seu relacionamento com a sra. De Bargeton, casada, com 36 anos, nobre e de gosto extravagante pelas artes e letras.
Apesar dos esforços da sra. de Bargeton, Lucien é ridicularizado pela sociedade de Angoulême, que não dava valor às letras e que desprezava sua origem humilde. Embora o relacionamento amoroso entre Lucien e a sra. de Bargeton tenha se mantido no plano platônico, as fofocas da sociedade fizeram com que eles decidissem se mudar para Paris.
No final da primeira parte, David casa-se com Éve, irmã de Lucien. Juntamente com sua sogra, David e Éve passam a residir em condições humildes na tipografia, pois eles entregaram suas economias para Lucien tentar a sorte em Paris.
A segunda parte do livro, “Um grande homem da província em Paris”, conta a história das ilusões perdidas de Lucien na capital francesa.
Rapidamente ocorre o desencanto mútuo entre Lucien e a sra. de Bargeton, causado pela nova vida em Paris. O jovem poeta, deslumbrado com a beleza e o frescor das moças parisienses, passa a enxergar a Sra. de Bargeton como velha e sem graça. Por outro lado, a Sra. de Bargeton percebe que, face aos artistas da capital, Lucien não era o intelectual que ela pensava; antes, era um caipira que não se ajustaria à sociedade parisiense. De possíveis amantes, transformam-se em inimigos.
Lucien logo se vê sozinho e miserável na capital francesa. Alia-se a um grupo de intelectuais pobretões como ele, mas idealistas, chamados de “Cenáculo”. Não consegue lançar em Paris seus dois livros, um de poesia, o outro um romance de época. Acaba ingressando no jornalismo e vende sua consciência e seu trabalho em troca das mais ardilosas negociações, em que acontecia frequentemente a destruição e a construção de reputações. Em rápida ascensão social, consegue ficar famoso, une-se à uma bela atriz de teatro, compra roupas da moda e se vinga, por meio de artigos de jornal, da Sra. de Bargeton.
Após sair dos jornais liberais em que trabalhava e ingressar nas fileiras da imprensa que defendia a monarquia, com o escopo de obter um título de nobreza, Lucien é perseguido por seus ex-colegas e rapidamente perde sua reputação e seus bens. A Sra. de Bargeton vinga-se dele.
A crítica de Balzac à imprensa é mordaz: não havia qualquer mérito no meio jornalístico, apenas interesses escusos e dinheiro. O ambicioso Lucien, como era ingênuo, foi completamente engolido pelas raposas da imprensa. Perdera suas ilusões sobre o valor da literatura - em Paris, tudo se resumia às relações sociais pautadas pelo dinheiro.
Completamente miserável e com a reputação queimada em Paris, Lucien decide voltar a Angoulême após 18 meses na capital.
A última parte do livro, “os sofrimentos do inventor”, conta as dificuldades de David Séchard em produzir um papel mais barato para impressão enquanto tentava pagar as dívidas feitas por Lucien em Paris. Ele se mostrou um laborioso e incansável inventor.
Aqui penso que Balzác tenha carregado muito a mão: tudo dá sempre errado para David, que é sabotado por seu funcionário mais próximo e é alvo de fraudes e maldades constantes perpetradas pelos irmãos Cointet, seus concorrentes na tipografia. Achei meio caricatural o herói romântico ter que sofrer até o final, ser preso injustamente, ver sua esposa passar por enormes dificuldades, enquanto para os vilões da trama tudo dava sempre certo. Fiquei angustiado enquanto lia essa parte.
Ao tratar das perseguições ao inventor David, Balzác denuncia a injustiça do sistema judiciário francês, que prestigiava completamente os interesses dos credores às custas da ruína dos devedores.
O contraste entre a conduta de vida dos amigos David e Lucien reflete, de certa forma, os próprios dilemas morais comuns à condição humana. Afinal, Lucien gostava apenas do status de ser poeta, não propriamente da poesia. Tinha a “natureza dos que amam as colheitas sem o trabalho”. Ele queria ser alguém, embora sem agir para tal. Por outro lado, David encarnava o trabalho lento e consistente, a perseverança: ele queria realmente inovar com seus experimentos e não simplesmente fazer dinheiro ou parecer o que não era.
David conhecia sua condição, suas qualidades e defeitos, sabia onde estava pisando. De uma certa forma, triunfou ao final. Já Lucien, vaidoso e ambicioso, queria simplesmente colher de onde não havia plantado, vivendo uma vida de ilusões. Perdeu-as todas.
O ritmo da trama é muito bem construído. Não conseguia parar de ler e “devorei” rapidamente o envolvente romance.
Carpeaux chama Balzac de “Homero da sociedade” e “Maquiavel da burguesia”, comparando-o a Shakespeare como grande conhecedor da natureza humana. Ele tem razão.
Sei o quão descabidas são as comparações em literatura, mas, após a leitura desta obra-prima, estou em sérias dúvidas se Flaubert é realmente o maior escritor francês que já li.