pablobrodrigues 10/08/2022
#resenha | «O General em seu labirinto», Gabriel García Márquez [Tradução de Moacir Werneck de Castro] (Record, 1989)*
A leitura pode ser entendida como uma das atividades mais sublimes que um ser humano pode realizar. Desvendar um código, como as letras, é algo que permite ao leitor a entrada em mundos desconhecidos, em mares nunca antes navegados. A Literatura vista como um desses mundos é um espaço que está aberto a todos. Há uma porta aberta esperando somente, que entrem por ela.
Sendo a Literatura esse mundo e compreendendo as páginas de um livro como um meio que permite a entrada, este mesmo livro não é somente o caminho para um novo lugar, como também é a chegada. Dessa forma temos a narrativa do escritor Gabriel José García Márquez como a estrada e a chegada a esse universo literário. Por meio de seus escritos podemos sentir o aroma e o clima de uma América Latina muitas vezes somente idealizada e desconhecida.
O General em seu labirinto é um dos brilhantes livros escritos por esse autor colombiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1982). De construção singela o livro é um tipo de narrativa que nos leva a olhar para a história Latino-americana através de uma percepção nova. Não importa se somos estudiosos da literatura, historiadores, leitores em início da jornada, a escrita de Márquez consegue nos cativar e nos prender. A simplicidade do autor não significa falta de exímio trabalho. Em agradecimentos que acompanham a edição de O General em seu labirinto, lançada pela editora Record (1989) tradução de Moacir Werneck de Castro, ele nos revela a complexidade de escrever os últimos dias da história do grande Simón Bolívar. Escolhendo um “tempo menos documentado da vida do general” indicando que “fundamentos históricos” não foram à centralidade do seu projeto.
Temos então, em O general em seu labirinto, não a presença do glorioso Bolívar, aclamado no ano de 1813 como Libertador da Venezuela, ou o grande personagem histórico simplesmente, mas um General que “já esta carcomido pela moléstia”, um Bolívar completamente desconhecido. O autor coloca em discussão em seu livro questões como a monumentalização do grande General, tocando em pontos como a reconstrução do próprio discurso histórico.
Alberto Manguel nos aponta que um monumento sempre traz a inscrição “lembre-se e pense”, e essa é a nossa atitude diante da imagem histórica do General Bolívar. Uma estátua equestre do General sobre uma base de granito em plena cidade do Rio de Janeiro gera em nós o sentimento de magnitude, e entendemos que somente os grandes homens podem ocupar tal espaço. Os elementos de uma estátua declaram interruptamente que os tempos não podem apagar o que este símbolo representa.
Porém, o que vemos na escrita de Márquez é um comandante que agora pertence ao passado, que rememora os tempos de glória. Uma personagem que deixa evidente que morrerá, nos apresentando uma monumentalização às avessas, ou em palavras de Joachim du Bellay “Aquilo que é sólido, pelo tempo é destruído,/ E aquilo que passa, resiste ao tempo”. O processo de humanização contido nas páginas d’O general em seu labirinto faz com que o leitor tenha uma aproximação com um Bolívar desconhecido. Doença, fragilidade e cansaço são intempéries da vida que só atingem ao humano, e não ao monumento. Detalhes esses que são extremantes bem elaborados por Gabriel García Márquez e que passam a somar à imagem coletiva do grande Libertador.
O autor não só demonstra os elementos de fragilidade como também elementos como o amor e amizade. José Palácios não é somente o “servidor mais antigo”, mas é também digno de estar presente no fim da história do General, é o servo que é “cumplice em tudo”. É uma espécie de secretário que desempenha o papel de confidente, “José Palácios sabia o quanto o general era sensível”, “o viu lutando para conter as lágrimas”. Para Palácios a maior herança, portanto, é morrer com o General.
García Márquez destaca ainda a grande relação de um general e suas inúmeras mulheres, entre elas, Manuela Sáenz, que o acompanha nos últimos dias de sua vida, ainda que em pensamento, e também as suas amantes, que buscava inutilmente esconder. Todas as personagens que giram em torno do grande General morrem sem a glória de um dia antes desfrutada, e ainda reforçam a decadência de um Bolívar abandonando.
O leitor se surpreende ao encontrar essas histórias paralelas a do General e de ler em certos momentos a história de simples personagens. Um caso particular no livro é o da cozinheira Fernanda Barriga, uma “índia plácida, gorda, tagarela”, que ocupava um papel de destaque na vida do General. Chamada por Carreño, especialmente, para cuidar da falta de apetite de Bolívar durante a viagem de exílio, pelo rio Magdalena, essa personagem pode apontar para essa “nova história”, em que apresenta o grande e o pequeno. Uma história olhada por baixo.
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Saindo dessa “história tradicional” e essencialmente política, que se interessa pelas grandes figuras públicas em detrimento de uma história da arte, da ciência, do medo, García Márquez constrói sua obra levando em consideração tema ocultos que permeia a vida do Grande Símon Bolívar. Se os últimos dias do Libertador são desconhecidos, de raros documentos, o autor boliviano reconstrói a história pelas lacunas documentais, não tendo a serviço a historiografia simplesmente, mas a literatura. A história nas páginas de O General em seu labirinto é entendida através de elementos esquecidos: um secretário, uma cozinheira, entendendo que “tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado.”
O General em seu labirinto é um dos grandes livros de uma literatura que segue a grande temática latino-americana, mas que ao mesmo tempo não se resume nisso. Sendo, então, a porta, o caminho, e a chegada ao mundo Literário. Entrar nesse universo de grandes frases será um deleite para os que ousarem ler as páginas de Gabriel Gárcia Marquez.
REFERÊNCIAS
BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O general em seu labirinto. Tradução: Moacir Werneck de Castro. Record: Rio de Janeiro, 1982.
site: https://pablobrodrigues.wordpress.com/2013/11/19/um-secretario-uma-cozinheira-e-um-general-de-pablo-rodrigues/