Lauraa Machado 29/12/2020
Um livro okay, mas com uma cena imperdoável
A série Bridgerton da Netflix me causou exatamente o que eu esperava que causasse: uma vontade louca de ler os livros. Eu já queria ler fazia um tempo, mas a cena de estupro que acontece no capítulo 18 foi o que me segurou. Depois da série, resolvi ler e descobrir sozinha como era a cena e julgar por mim mesma. Ouvi o audiobook desse livro em inglês na Storytel, que tem a história completa e o segundo epílogo extra.
Eu não esperava grande coisa, admito. Fiquei um pouco surpresa por ter gostado, mas queria ter gostado mais. Achei que a personagem da Daphne foi mais engraçada e divertida no livro do que na série, apesar de ela se fazer de clássica garota irresistível e bonita que não sabe que é bonita.
Achei o Simon muito puxado para o clichê homem forte e silencioso com passado sofrido que é incompreendido por todos e poderia ter qualquer garota que quisesse, mas quer logo aquela que se acha feia e sem graça. Também achei a possessão dele, ainda que coerente, bem ruim, o que me deixou desconfortável com várias atitudes suas. Por exemplo, quando ele ameaçou quebrar uma porta por ela ter trancado e depois ainda teve uma cena em que se afasta dela, pensando que tem que sair de perto senão pode machucá-la. Pequenas atitudes, mas que são sinais de alerta para um relacionamento abusivo ou tóxico. Claro que a autora controla isso, então acabou transformando na relação perfeita, mas na vida real um homem que tem atitudes assim muito provavelmente vai maltratar sua mulher algum dia.
Também achei que alguns diálogos foram forçados e bastante bregas, me fazendo estremecer em voz alta e cortando bastante do clima do livro. Por último, o narrador onisciente tirou muito do mistério, da tensão e da apreensão que eu poderia ter sentido se tivesse um único ponto de vista, se tivesse vivido tudo ao lado de Daphne.
O livro é okay, na verdade. Dei 3 estrelas. Se demora em algumas partes desnecessárias, tem cenas que são prolongadas e que não saem do lugar. Além disso, a relação entre os personagens perdeu um pouco da graça, na minha opinião, quando eles parecem ter sempre atitudes modernas, com consequências só quando é uma vantagem para o enredo. Mas não achei tão ruim assim. Tirando, é claro, aquela cena. Sabe, aquela de estupro.
Vou dar alguns spoilers daqui para a frente. Se você não saber quais são, pode parar de ler a resenha por aqui.
A cena começa na página 237 da edição comum de O Duque e Eu da editora Arqueiro. Já eu ouvi o audibook em inglês (original), principalmente porque eu já assinava a Storytel e não queria gastar mais dinheiro para ler um livro que eu sabia que teria uma cena de estupro que até hoje a autora defende.
Para mim, a cena do livro é imperdoável, não porque ele diz "não", ou "espera", ou qualquer coisa assim, mas por que ela já sabia antes que ele não queria ter filho. A briga dos dois acontece antes, ou seja, ela já tinha todas as informações, já sabia o que estava fazendo. Não tem como alegar ignorância nesse ponto.
Pior que isso, Simon está bêbado, dormindo, o que ela literalmente pensa para a levar a tomar essa atitude. Ele "acorda" no meio, mas para mim ainda não tem como defender. Ela simplesmente começa a tocar nele enquanto ele dorme, e isso é estupro. Ele acorda ainda bêbado, longe de poder tomar alguma decisão sobre consentimento. Ela sabia que ele não queria, sabia por que ele ejaculava fora. Não tem como perdoar.
O pior é que, outra vez, a cena não faz a menor diferença no enredo. Ela poderia ter sido cortada sem atrapalhar nada, Daphne poderia ter um susto de gravidez, um atraso na menstruação somente pelo fato de que a técnica de ejacular para fora NÃO FUNCIONA.
Além disso, essa atitude da Daphne, apesar de encaixar até bem com ela na série, não encaixa nem um pouco com a personalidade dela no resto da livro. A pessoa que ela se mostra desde o começo e até depois dessa cena não é a mesma que tomou essa atitude. Fiquei com a impressão de que era algo que alguma pessoa de fora tivesse escrito para o livro e acrescentado sem a permissão da Julia Quinn e da editora, já que nem encaixava. Completamente desnecessário.
E eu super perdoaria a autora por ela ter sido tão ignorante quanto a Daphne em entender, antes do ano de 2000 (quando foi lançado) que o que ela fez foi estupro, se não fosse pelas suas próprias atitudes desde então. Não importa quantas vezes fãs e leitores falam para a autora sobre a problemática da cena, ela continua a defendendo ou ignorando.
Meu desejo é que criem edições novas com essa cena editada. Mas duvido que há alguma esperança.