mpettrus 12/12/2022
?Ninguém Escreve Para o Esquecimento?
?A primeira vez que li um romance do Gabo foi ?Ninguém Escreve ao Coronel?, ainda adolescente e ainda nem tinha ingressado no Ensino Médio, estava no último ano do Fundamental. De lá para cá, eu já o reli quantas vezes que perdi as contas. E, se bem me lembro, eu o li em duas ou três manhãs durante o intervalo, que no Ensino Fundamental, chamávamos de ?recreio?. Em vez de ir brincar com os coleguinhas de classe, eu me embrenhava pelos corredores da biblioteca da escola e ficava lendo romances.
Numa dessas manhãs de fuga para a biblioteca, encontrei meu professor de português naqueles corredores silenciosos de penumbra do meu esconderijo público. Ao tomar conhecimento do que eu fazia no recreio, interessou-se em me indicar um livro para ler. Eis então que ele coloca em minhas mãos o romance do Gabo e nasceu daí minha paixão pelo Gabriel, não só o autor, mas também o próprio professor.
?Esse romance, o segundo da carreira literária de Gabito, coloca em cena um ancião e sua esposa. Ele, coronel militar, ex-combatente dos violentos conflitos que tomaram o território colombiano décadas atrás, aguarda o cumprimento de uma promessa de aposentadoria do governo. Ela, dona de casa caribenha, enferma e sem renda, exige do marido uma atitude prática com relação à crítica situação econômica do casal. Ambos sofrem a morte recente de Agustín, seu único filho, crivado de balas por um soldado após distribuir panfletos subversivos em uma rinha de galo. Aliás, vale lembrar que o filho é o único do qual temos conhecimento do nome. As outras personagens só os conhecemos por ?Coronel? e a ?Esposa do Coronel?.
A linguagem é extremamente econômica. Frases breves, pouco ou nada descritivas, dão conta do ritmo rápido e ao mesmo tempo melancólico da história, traz o deleite de uma linguagem antiga, da linguagem falada, da linguagem detalhista e não alegórica. É a linguagem direta, sem metáforas. Uma linguagem leve, mas nem por isso fraca ou indigna. A narrativa segue uma linha reta, ainda que exista uma peculiaridade no que se refere ao ritmo das ações intermináveis de idas e vindas de seu protagonista.
? Existe aqui uma limpeza retórica, montada sobre um aparelho literário extremamente simples, com ausências de intermitências ou desvios, tudo se ajustando ao explícito relato da vida cotidiana do coronel e de sua esposa. Esse anônimo coronel e veterano da última guerra civil, segundo a narrativa, que vivencia um complexo abandono do Estado e leva vinte cinco anos de sua vida confiando que um dia receberá uma notificação oficial com a pensão que lhe seria concedida por causa de seu trabalho junto ao exército militar. Ele proclama sentenciosamente: ?Nunca é tarde para nada?.
? O romance não é extenso. O narrador é extremamente sucinto preenchendo a sequência dos fatos e espaços com uma linguagem sóbria e objetiva, abrindo-se muito pouco para comentários de qualquer ordem e limitando-se apenas a observar os passos do protagonista. Os rompantes emocionais se darão vez ou outra apenas nas discussões que as personagens engendram e que, por sua vez, serão construídas em diálogos fortes, igualmente breves.
Abocanhado pela miséria, torturado pelo desdém e o esquecimento, o coronel enfrenta cada dia uma penúria desvairada acompanhado de sua mulher, que sofre de asma. O protagonista invalida como pode sua dignidade, sobrevivendo com empréstimos e favores de conhecidos. Ele segue os dias vendendo tudo o que havia em sua casa, menos um galo velho de briga que pertenceu ao seu falecido filho.
É interessante notar que a Esposa é uma personagem extremamente elementar, singular dentro desse texto garciamarqueana. Ela se recusa a lutar pela pensão do marido junto dele, e consequentemente, a lutar também pela própria sobrevivência. O mundo da impessoalidade, o da espera é o principal elemento que marca essa incrível personagem. Ela vive uma longa espera, e espera de maneira infeliz, sem esperanças de que algo possa mudar como ela verbaliza ?nós estamos apodrecendo vivos?.
?O romance também se encaixa na característica do romance histórico. O herói do romance garciamarqueano é um homem ?mediano, mais ou menos medíocre? de certa inteligência prática, porém não excepcional certa firmeza moral e honestidade que beiram o sacrifício, mas jamais alcançam o nível de uma paixão humana arrebatadora.
A humanidade do Coronel se constrói a partir de todo o processo histórico que forjou sua ética de honra e dever: a experiência da guerra e a longa espera do cumprimento do Tratado de Neerlândia. Ele é um personagem de seu próprio tempo e espaço! A espera, a solidão e o vislumbramento de um futuro glorioso que nunca chega.
? A perspectiva fantástica que encontro nesse romance se dá pelo tom regionalista da história, e transfiguram pelo acatamento de elementos não realistas, que beiram o absurdo, colocando a fantasia presente na solidão e no pagamento da aposentadoria do coronel reformado. Essa espera que nunca finda, traz o vazio, a vida desprovida de significado, o que a meu ver, é uma forma alegórica de violência sobre a vida do homem. Todos os personagens do livro são atores de uma violência institucionalizada pela ausência ou indiferença do Estado, algo que se prolonga já há tanto tempo que entrou para a rotina do povoado e se transformou em um hábito.
? Devo-lhes dizer que esse romance traz concepções de representação da vida real e do significado concreto, histórico, dos fatos, por isso também o considero um romance de realismo histórico, por despertar uma sensibilidade para a História da Colômbia. O autor nos entrega uma obra realista figurada na experiência particular do Coronel, da esposa, do povoado, como um todo, mas expressa, concomitantemente, uma universalização justamente pela humanização de suas personagens inseridas em uma época de crise envolta de um sentimento de desintegração social.
?Costumo falar que a solidão é o tema mais importante das obras do autor, aqui também apresenta perfeitamente o abandono transcendental do homem, o sentimento de orfandade, e ganha às dimensões de um romance histórico grave e austero ao envolver, em poucas páginas, momentos que repercutem na vida social, política e individual de toda a humanidade.