Paula 10/08/2010
O caos da humanidade, traduzido em fantasia
Barroco Tropical, último romance do escritor angolano José Eduardo Agualusa, é uma fantasia que sustenta inquestionável credibilidade, ao se propor revelar as mazelas da sociedade de Luanda (Angola), no ano de 2020, quando se passa a narrativa. Não fala de fome, de déficit na rede pública de saúde, da má qualidade da educação oferecida pelo Estado – um caos já muito esclarecido nos tempos de hoje. Seu objeto de reflexão são as fraquezas humanas, no centro das quais está o Medo, que permite consolidarem-se a violência, a corrupção, a traição, os assassinatos e o interesse instintivo do homem por acontecimentos místicos que lhe traem o raciocínio lógico.
A narrativa – que se divide entre África, Europa e América – tem seu ponto de partida na queda inusitada de uma mulher. Caindo do céu, estatela-se no chão, e os únicos a presenciarem a cena são o escritor Bartolomeu Falcato e sua amante, a famosa cantora Kianda. Como testemunhas desse acontecimento, que norteia uma linha narrativa de inúmeras histórias paralelas, essas duas personagens principais revezam o posto de narrador, imprimindo à história dois pontos de vista que ora se completam, ora se desmentem.
Bartolomeu já sofreu muito. Culpava-se cruelmente pela morte de sua filha de três anos, vivia sem rumo nem objetivo, era incapaz de consolar a esposa, até que resgata o sentido da sua vida ao se apaixonar por Kianda. Sua vida, atribulada, é peça-chave de todos os outros acontecimentos do livro.
Kianda, a cantora, é completa. Muito além de amante, coleciona imoralidades como o vício em consumismo, cocaína, álcool e calmantes. Abriga, no entanto, uma alma bondosa, de cuja luz ela tem plena consciência (Na minha morte arrastarei comigo, para dentro do meu próprio abismo, tudo o que me rodeia, inclusive a luz). Foi capaz de esclarecer, com a mais brilhante exposição, a diferença entre a alegria (resultado de um entorpecimento do espírito) e a felicidade (uma iluminação momentânea), uma das tantas partes poéticas de que o livro é composto.
Completando a complexa rede de personagens, cujas apresentações acontecem didaticamente em dois capítulos a elas dedicados (um para as personagens principais e outra para as secundárias), há o Rato Mickey, ex-sapador que usa uma máscara para ocultar seu rosto desfigurado pela explosão de uma mina; Tata Ambroise, curandeiro metido a psiquiatra que toma conta de um labiríntico manicômio que abriga loucos e presos políticos; Mãe Mocinha, ialorixá baiana que sabe de tudo que se passa na vida das personagens sem que se explique quem lhe informa; e a ex-Miss Angola, Núbia de Matos, que – embora morra logo no primeiro capítulo – permeia toda a narrativa, com a instigante história de quem convivera com grandes políticos e empresários e que, perto do fim de sua vida, afirma ter recebido a revelação de que é Virgem Maria e, para dar à luz o Salvador, precisa relacionar-se com José – Bartolomeu, segundo a revelação.
Participam da trama também poetas, empresários, estilistas, jornalistas e políticos, cada um detentor de uma história que, por si só, já justificaria um enredo próprio.
Todos esses caracteres fundem-se, fantasticamente, em uma trama que, ao mesmo tempo em que investiga a morte da ex-Miss, tenta decifrar a existência e o paradeiro de um místico anjo negro.
Com parágrafos longos e capítulos curtos, falta fôlego à leitura, na medida em que o leitor, envolvido em tantas micro-histórias, vê-se obrigado a retomar capítulos passados para relembrar a descrição de um ou outro personagem. Esta é uma das vantagens da literatura em relação à vida: podemos sempre voltar ao princípio, como afirma o autor.
Comentários de Agualusa, aliás, não faltam. Dando voz ao autor, o escritor ficcional Bartolomeu Falcato abusa de comentários quase didáticos, que aproximam o leitor à construção da trama, evidenciando a escolha de certos termos pouco usuais, explicação de outros e diálogos íntimos com o leitor, como se Agualusa – ou melhor, Bartolomeu – interrompesse a narrativa para avaliar a aprovação do leitor.
Por tudo isso, Barroco Tropical, definido pelo próprio Agualusa como uma distopia e o mais exuberante dos sete romances já escritos por ele, é um alerta à sociedade: não só de Angola, posto que o aviso é útil a qualquer homem que algum dia já tenha se visto tentado – quer por amor, por medo ou por ambos – a degenerar-se na corrupção, na traição ou na dor.
É esse reconhecimento catártico do leitor em relação à trama dos sentimentos que dota essa fantasia de tamanha credibilidade. Afinal, só ouve o alerta de Agualusa o leitor que estiver suficientemente aberto a refletir sobre suas fraquezas, aprendendo que, ao se deixar corromper-se pelo medo, sofre o inevitável castigo da solidão.