Raphael 04/08/2021A simplicidade que não ousa olhar nos olhos, mas ousa ser...Livro: Uma Vida em Segredo
Autor: Autran Dourado
Edição da Rocco, 134 páginas.
Meu primeiro contato com a obra do escritor mineiro Autran Dourado foi através dessa novela, muito gostosinha de ser lida, que eu devorei em um só dia, aproveitando o último feriado municipal.
Prima Biela, a protagonista desta novela, é o que se costuma chamar - um tanto preconceituosamente - de um verdadeiro "bicho do mato". Nascida na Fazenda do Fundão, órfã de mãe desde muito cedo, Biela foi criada pelo pai, Juvêncio, um homem ignorante, de temperamento irascível, possivelmente epilético, rico proprietário da Fazenda do Fundão.
A narrativa se inicia com a notícia da morte de Juvêncio, quando seu primo, Conrado, designado testamenteiro e tutor de Biela, bem como detentor do usufruto de suas terras enquanto ela fosse menor, vai buscar a prima para viver com a sua família na cidade. Anote-se que, a princípio, Conrado cogitou enviar a prima para um Convento, mas foi dissuadido habilmente pela esposa, Constança, que julgando que seria interessante ter uma pessoa nova na casa e uma companhia, o convenceu a trazer a prima para viver entre eles.
Armaram-se as expectativas para receber prima Biela e sua chegada foi uma tremenda decepção. Feia, desengonçada, mal vestida, tímida ao ponto de não olhar nos olhos e não saber conversar, além de analfabeta e sem instrução. Apesar de haver se constituído como uma rica herdeira, Biela representa a gente simples da roça e sua natureza entrará em choque com o modo de vida da família.
Inicialmente, Biela tentará se adequar ao ambiente da família: se esforça para aprender a comer com talheres; aceita os vestidos que Constança lhe encomenda; aceita inclusive o noivo que escolhem à sua revelia e que, fazendo pouco dela, se evade. Esse sentimento constante de inadequação em face do mundo dessas pessoas eventualmente levará prima Biela a, mansamente, insurgir-se contra a negação de si mesma.
Volta a usar os seus velhos vestidos de chita, deixa a mesa da família, que passa a deixar de fazer questão de sua presença entre eles, e passa a comer na cozinha, junto dos empregados da casa, entre os quais se sentia muito mais à vontade. Apesar de rica, não dá qualquer valor ao dinheiro e delega inteiramente a gestão de seus bens a Conrado, ao passo que passa a fazer pequenos serviços nas redondezas e aceita, sem nunca o exigir, o dinheiro que lhe dão como paga.
Aterrorizada e humilhada pelos meninos da família - sobretudo Alfeu; desconsiderada por Conrado; após os sucessos iniciais, ignorada por Constança; nesta casa que se tornou o seu lugar sem ser o seu lugar, prima Biela encontrará algum alento no afeto da menina Marcília, cuja música ao piano lhe fornecerá novos elementos com que compor os seus sonhos, ao lado das batidas do monjolo da Fazenda do Fundão e do canto da mãe, que embalam as suas noites de sono.
Os anos passam, os filhos se casam e deixam a casa, enquanto Biela se muda para um quartinho dos fundos, junto à despensa. A casa, vazia, se entristece e no outono da vida, prima Biela encontrará no amor incondicional de um cachorro recolhido na rua o seu último refúgio contra a solidão.
Num lugar que não era o seu lugar, deixou de lutar contra a sua natureza, voltou-se para si mesma e, à sua maneira, foi feliz. Biela representa a simplicidade que não ousa olhar nos olhos, mas ousa ser.
Linda história, muito mineira na ambientação e na linguagem da narrativa e que me fez terminar o livro com uma tremenda vontade de tomar uma xícara de café e de comer uma broa de fubá.
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