spoiler visualizarBrujo 05/03/2024
O Olho No Céu Vela Por Ti
O ano era 1955. O Macartismo estava à todo vapor, o "medo vermelho" estava instalado nas mentes das autoridades estadounidenses, criando um período moderno de caça às bruxas. Era um período bastante conturbado.
Em um certo dia de inverno do ano citado, Philip K. Dick estava sozinho em sua casa escutando música clássica, quando recebe a visita de uma dupla que se identifica como agentes do FBI. Eles estavam ali para investigar a esposa de Philip, Kleo Mini, já que esta praticava atividades "supeitas" como ser filiada ao Partido Comunista, assinar certas petições e etc. O casal passa a receber a visita constante da dupla de agentes e, em determinado momento, Philip passa a ter uma espécie de amizade com um deles. Certo dia, PKD argumenta com seu amigo agente que se sua esposa Kleo fosse de fato comunista ela não teria praticado tais "atividades suspeitas" de forma tão aberta, que ela era apenas uma mulher culta e interessada em diversos assuntos e que os peixes grandes provavelmente se escondiam atrás de cargos de poder na sociedade americana. Sem muita convicção, seu amigo diz que o FBI precisava se pautar nas ações dos cidadãos em si, que não havia como estar na cabeça dos comunistas. Isso fez Philip pensar: como seria estar dentro da cabeça de outra pessoa? De um fanático religioso ou de uma pessoa psicótica, por exemplo?
Segundo consta na biografia "Eu estou vivo, vocês estão mortos":
Na mesma noite, ele digitou estas linhas, um notável apanhado daquilo que, em ficção científica, é capaz de dissuadir parte importante do público cultivado a se arriscar até a página seguinte:
"Em 2 de outubro de 1959 [o ano atual era 1956, tratava-se de uma antecipação a curtíssimo prazol], o defletor do feixe de protons do Bevatron de Belmont sofreu uma avaria: um arco de 6 milhões de volts disparou rumo ao teto da sala, queimando tudo o que estava no caminho, em especial a plataforma de observação sobre a qual estavam oito pessoas. Estas caíram no chão e nele permaneceram, feridas ou mergulhadas no coma até que o campo magnético foi interrompido e as radiações mais rigorosas foram parcialmente reabsorvidas" (...).E, no ano de 1957, PKD lançava "Olho no Céu", tendo esse evento com o FBI como base para o desenvolvimento de mais um roteiro brilhante.
O livro acompanha a historia de Jack Hamilton, um técnico em eletrônica que trabalha em uma empresa que fabrica armamento bélico para o governo. Acontece que ele acaba sendo mandado embora quando Charlie McFeyffe, amigo pessoal de Hamilton e chefe de segurança da empresa, acusa a esposa do nosso protagonista, Marsha Hamilton, de ser simpatizante do Partido Comunista, o que oferecia risco à segurança da empresa.
No mesmo dia, McFeyffe acompanha os Hamilton (uma forma de minimizar os danos com seu "amigo") a uma visita ao Bevatron, um defletor de prótons (seja lá o que isso signifique) que é aberto à visitações.
Um acidente acontece no local, sendo que o trio e mais cinco pessoas acabam no meio dos destroços da instalação do Bevatron: Bill Laws, um doutor em física que só conseguiu trabalho como guia turistico; Arthur Sylvester, um militar aposentado; Edith Pritchet, uma burguesa amante das artes, juntamente com seu filho; Joan Reiss, uma mulher com fortes traços paranóicos.
Em resumo, o acidente faz com que essas oito pessoas passem a transitar por quatro realidades diferentes, cada uma moldada pela mente de um integrante do grupo citado: uma realidade onde os milagres existem de fato e são corriqueiros e o contato com Deus é real e direto (é nesta realidade que aparece o "olho no céu" do titulo); um mundo onde classes inteiras de pessoas e objetos são eliminados da existência simplesmente por não serem agradáveis; outro onde todos os objetos são um risco à integridade física e atacam as pessoas; e por fim, um mundo onde os EUA são uma caricatura segundo a visão de comunistas extremos. Ou seja, hoje o conceito de Multiverso está na moda, mas o PKD já escrevia sobre isso em 1956!!
É normal que os livros do autor possuam certas doses de sarcasmo e crítica, mas aqui ele enfia o dedo em diversas feridas, de forma direta e bem menos sutil que nos outros livros dele que li. Os alvos da escrita ácida de Dick aqui são: o fanatismo religioso, o desdém pela ciência, o macartismo, o comunismo e, principalmente, o preconceito racial. O autor até já tratou desse tema, mas sempre de forma indireta e sutil. Mas aqui não, as críticas são diretas, com todas as letras.
Há uma sacada de gênio aqui ao colocar lado a lado visões extremas de direita e esquerda com a psicose, colocando tudo no mesmo patamar: o patamar de doenças mentais, de pensamentos nocivos ao indivíduo e à própria sociedade. O que me parece é que o PKD diz aqui o seguinte: olhem o terror que o mundo seria se fosse governado de forma implacável somente por uma única forma de pensamento, sem debate. Nós vimos no mundo real o que isso acarreta: temos os regimes nazista de Hitler, Comunista de Stalin e recentemente a autocracia de Putin na Rússia ou a imposição extrema da religião no Oriente Médio. O resultado de um local governado por apenas uma única visão não tem outro caminho senão o do retrocesso, da supressão de direitos e do derramamento de sangue. Essa é a mensagem mais poderosa desse livro para mim!
E, para os chatos de plantão que não gostam de finais abertos: de forma bastante sutil, a história acaba de forma ambígua, tal qual o peão girando no fim do filme Inception. Só que o peão aqui é... uma abelha !!
TS: Sir Lord Baltimore - Kingdom Come (1970)