spoiler visualizarSofia136 01/04/2024
"Quer dizer que o amor ri de mães, e pais, e irmãs, e irmãos, e amigos, e amigas, e até mesmo do próprio amado?"
Sons and Lovers, o primeiro “grande” romance de Lawrence, escrito em 1912, narra a vida de Paul Morel e seu amadurecimento como homem e artista. No coração da obra, está o elo libidinal de Paul com sua mãe, Gertrude (xará da mãe de Hamlet), que é a influência principal e determinante da vida do rapaz, e circunscreve seus relacionamentos posteriores com Miriam e Clara. Em relação a esse elo, Paul forma sua personalidade, replicando protraidamente aquilo que Freud chamou de “complexo de Édipo”.
O romance é composto por uma sucessão de cenas do dia-a-dia na cidade carvoeira onde Paul cresce. Vemos o casal Morel brigando, o pai indo às minas, os filhos cozinhando, limpando a louça, ou pegando o trem para Nottingham. Acompanhamos as amizades, os primeiros amores, os passeios e os dias de trabalho dos personagens, que amadurecem ao longo da narrativa. Mas, apesar da importância do cotidiano em Sons and Lovers, retratado com carinho e complexidade por Lawrence, o universo ficcional aqui não se restringe a ele. Desde o início, a natureza ocupa um lugar especial na vida dos personagens, como um espaço de horror e transcendência no qual eles podem se realizar mais verdadeiramente.
De forma análoga ao Bildungsroman de Joyce, cuja forma se desenvolve junto ao protagonista Stephen Dedalus, indo dos balbucios de um bebê ao discurso filosófico, aqui a “grande força” da natureza impessoal ocupa cada vez mais espaço na narrativa conforme Paul amadurece. Ao invés da experimentação linguística joyceana, encontramos em Sons and Lovers a exploração de uma região “noturna” da consciência humana, que arrisca dissolver-se e tornar-se uma só com a vastidão terrível do mundo. Essa exploração, é claro, tem consequências para a estrutura do romance. A princípio, vislumbramos esse universo através de Gertrude, que, observando as colinas de Derbyshire, consegue ter “paz e força para ver a si mesma” (70), ainda que essa visão não lhe ofereça um meio de escape das suas frustrações individuais. Posteriormente, o jovem Paul encontra um refúgio na “imensa lua vermelha” que se ergue como um “grande pássaro” nos campos e o faz lembrar da lua de sangue da Bíblia — uma imagem apocalíptica, revelatória.
Mas só no final do livro Paul, tendo recebido o “batismo da vida” (690) através do amor de Miriam e Clara, enxergará que “o maior de todos os objetivos [é] perder-se na escuridão e mover-se ali, identificado com o Grande Ser” (549). A clareza dessa visão depende de um encontro com a natureza: “Era como se ele, e as estrelas, e a folhagem escura, e Clara fossem consumidos por uma imensa labareda, indo para frente e para cima. Tudo corria, vivendo, ao seu lado; tudo parava, perfeito em si, junto a ele. Essa quietude maravilhosa em cada coisa, enquanto se formava num êxtase de vida, parecia-lhe o ponto mais alto da felicidade” (696). Unem-se nessa percepção o “sensualismo” do pai e o senso “moral” da mãe, que o romance estabelece como o centro do conflito entre o casal Morel (29). Paul se realiza na síntese desses dois impulsos.
É possível comparar o protagonista de Lawrence com Lily Briscoe, de To the Lighthouse. O romance de Virginia Woolf, similarmente a Sons and Lovers, tem inspiração autobiográfica e dramatiza a formação de um personagem-artista ao longo do tempo. Como Paul Morel, Lily Briscoe é uma pintora em busca de um meio de expressão adequado, que ela só encontra na última parte do romance. Lily triunfa, finalmente, na realização de uma visão pessoal: “I have had my vision” (“Eu tive minha visão”). Um momento “eureka” desse tipo não seria possível para Paul. A visão verdadeira, Sons and Lovers sugere, só pode ser impessoal. “Pintar não é viver — então viva,” (785) o protagonista conclui, escolhendo a vida ao invés da morte, enquanto se aproxima da “fosforescência dourada da cidade” (801).
“Meu apostolozinho, [...] quer dizer que o amor ri de mães, e pais, e irmãs, e irmãos, e amigos, e amigas, e até mesmo do próprio amado?”, uma amiga de Paul pergunta a ele. E a mãe do rapaz se questiona, quando ele ainda é recém-nascido: ele será um José, o filho mais querido? Ela prefere, entretanto, chamá-lo de Paul, como o apóstolo severo do Novo Testamento. “De fato, é um grande sorriso,” Paul responde à amiga: sim, o amor ri de tudo e todos. E rirá, enquanto buscar essa “fosforescência dourada”.