Don Hoffman 02/07/2022
O básico da justiça que não deveria escapar ao conhecimento do povo
Dos Delitos e das Penas não é somente um clássico do direito, mas uma obra atemporal, pois, ainda que seja em parte afetada pelo obsoletismo que a evolução da sociedade causa, não pode jamais ser invalidada por qualquer fruto que seja desta mesma "evolução".
Isso porque em suma, as sociedades em si nunca deixam de ser a mesmíssima coisa, dado ao fato de que a natureza do homem, até o presente instante, é inalterável.
Trata-se sempre, portanto, de uma mera repetição de fatos orquestrados no mesmo cenário onde apenas as circunstâncias e o tempo diferem.
Pode soar como um absurdo; uma temeridade tal alegação, no entanto, a história da humanidade atesta isso, sendo uma imparável e incansável sucessão de fatos e erros que na raiz de sua natureza são demasiadamente semelhantes, ou até mesmo, iguais.
Se não fosse assim, não veríamos guerras políticas onde o verdadeiro objetivo da política é sempre exaustivamente suplantado pelos interesses particulares de cada lado da disputa, nem tampouco, atos despóticos aprovados pelo estado. E nem muito menos, barbáries cometidas por aqueles que deveriam proteger, e assegurar a estabilidade do que se configura como o "pacto social".
O objetivo do autor com a ousadia que dera causa à seu escrito era justamente tentar alterar aquela realidade aterradora que circundava a todos. Ele então, põe-se a analisar as incorreções do débil sistema criminal de sua época, que julgava inadequado a uma era esclarecida. (Beccaria fazia parte do iluminismo, movimento este que preza pelo uso da razão em todas as causas, tendo exercido forte influência no século XVIII.)
Onde seres humanos, dotados das mesmas paixões, reduziam seus semelhantes a uma condição inferior a bestial, cuja descrição soaria como quimérica, por atos que eles próprios poderiam vir a cometer caso se encontrassem em semelhantes condições.
Sendo estas mesmas condições favorecidas pelo próprio modo como se regula a sociedade, ou seja, pelas próprias leis, vez que, a submissão tirânica que estas criam, impedem que os crimes não sejam cometidos. (Eis o significado de "contraproducente" que aqui é sinônimo de "legislação".)
Notadamente um ato ousado, vez que, se você afirma algo contrário ao estabelecido, condena à dúvida o que foi afirmado por outro indivíduo (Baltasar Gracián não errou ao dizer isso), e se desse ato resultam consequências consideráveis atualmente, o que se poderia esperar como resultado da mesma atitude se cometida 258 anos atrás em uma nação que fora tão marcada historicamente pelas mais refinadas atrocidades da humanidade?
Devido a sua repetição velada, cujo objetivo era tão somente impregnar na mente do leitor a ideia que rege o livro, pode-se resumi-lo da seguinte maneira, pois este princípio base deve ser observado na aplicação de qualquer punição independente de sua gravidade e em qualquer tempo.
"Sendo a justiça o vínculo necessário para manter unidos os interesses individuais de cada, sem os quais se reestabelece o estado de caos, o direito de punir, nasce da necessidade de manter esse vínculo intacto, sendo tal direito a forma pela qual se defende a liberdade pública ".
Desse direito resultam as penas, que devem ser proporcionais ao delito. Sua função é tão somente impedir que o criminoso cause ainda mais danos a sociedade e servir como exemplo para os outros indivíduos (a pena mostra sua efetividade ao ser mais trágica para aquele que assiste do que para aquele que dela sofre).
O grau de um delito por sua vez só pode ser medido pelo dano causado a sociedade; quaisquer outras razões como a intenção do criminoso por exemplo não são consideradas (há divergência sobre isso).
Portanto, "a pena deve causar a mais forte e duradoura impressão na mente dos indivíduos com o mínimo tormento ao criminoso."
Logo, faz-se necessário que o meio de prevenção seja tão forte quanto o estímulo para que se cometa o crime, agindo as penas como obstáculos que evitam a consumação dos interesses que constituem o delito sem que se destrua a causa que os originou.
Todavia, para que isso funcione corretamente, a penalidade deve ser tão análoga quanto possível a natureza do crime, levando o indivíduo ao ímpeto contrário aquele de cometê-lo, para que não perca seu efeito de ser exemplar, e nem tampouco coloque a vida de outros em risco.
Essa celeridade necessária a segurança social levanta outro questionamento. "Como fará o criminoso para defender-se em meio a essas circunstâncias?" Disporá de tempo suficientemente curto para que se façam observadas as condições aduzidas sem que para tal haja injustiça. Ou seja, o tempo de inquérito dependerá também da natureza do crime.
Ademais, é justamente nesta questão da serventia do exemplo que reside a maior dúvida por parte da maioria das pessoas, que pensam ser a resolução do problema instaurar a pena mais severa possível.
A mente humana parece incapaz de num primeiro momento, vislumbrar a concepção de paradigmas que obedeçam ao viés do comedimento para solucionar os óbices que lhe circundam, só conseguindo tal feito tardiamente, quando os efeitos nocivos dessas soluções implacáveis já se manifestaram de tal maneira, que a continuidade se torna insustentável, ou uma reparação já não é mais possível.
Dessarte ser esse tipo de desígnio de autoria da psiquê dos homens, ela própria não é capaz de obedecer a esta sugestão, pois se torna insensível as crueldades, o que levaria, como outrora levara no passado; tal resolução a trazer mais problemas que qualquer solução plausível, além da clara desumanidade que ela promove.
"Uma força mínima continuamente aplicada vence qualquer movimento violento aplicado a um corpo".
Este teorema é aplicado pelo autor nos pontos analisados por ele onde, a crueldade utilizada para punir que já não se justificaria de qualquer maneira, era tão inútil quanto prejudicial a própria sociedade, causando o efeito contrário ao objetivo que lhe deu causa.
Os sentidos do homem, tão mencionados pelo autor como a razão orientadora de tudo o que ocorre no meio social não são tão impressionados por possíveis consequências futuras, por mais graves que estas sejam, pois o homem não teme qualquer mal que não aquele que ocorra no presente, pois para o mesmo, o mal futuro inexiste, sendo reduzido a condição de mera possibilidade. A certeza de uma pena branda é mais aterrorizante que a mera possibilidade de uma severa, dessa maneira, as penas muito severas exaltam o caráter de sua ineficácia.
O terror da morte por exemplo, causa uma impressão tão leve que não tem força suficiente para resistir ao esquecimento natural dos seres humanos. A morte, se extingue com a razão que lhe dera causa, levando os indivíduos mais a banalizá-la e até mesmo a enxergá-la como uma consequência branda a seus atos que a temê-la de fato.
Além disso, se as penas forem extremamente severas, os homens serão naturalmente levados ao cometimento de outros crimes para que se possa compensar a primeira punição, e com o passar do tempo, as mentes dos indivíduos proporcionalmente a essas crueldades tornar-se-ão mais insensíveis, mais duras, os levando a julgar estes mesmos atos como trivialidades, logo literalmente toda a sociedade é reduzida a uma horda de bárbaros capazes das piores atrocidades o que, como resultado, acarretará em sua própria aniquilação.
Portanto, para que a pena tenha seu efeito, bastará que sua consequência suplante o benefício que o crime promoveria, essa consequência por sua vez, deve obedecer a um cálculo de sua infalibilidade e da perda do bem causada pelo delito. Se o resultado for uma severidade inútil ou contrária ao bem público será também contrária aos parâmetros da justiça e do pacto social.
Como se sabe, as leis surgem a partir dos costumes, que por sua vez surgem da natureza humana, logo, não podem estas leis estabelecerem algo que vá contra o ímpeto natural dos homens, pois seria como se as mesmas estivessem na qualidade de um tronco de árvore, tentando impedir um rio de seguir seu curso, ato que atesta sua inutilidade.
"A razão nos diz que são inúteis e por consequência destrutivas as leis que contradizem o sentimento natural da humanidade."
As leis devem estar sempre de acordo com esta condição, caso contrário serão destruídas, ou, em casos mais extremos, levarão a uma revolução na forma de governo estabelecida. Por outro lado, se as leis forem inúteis, serão vistas como obstáculos a serem superados.
Tendo essa filosofia como base, o autor discorre sobre as mais variadas formas de delito, sendo as mesmas, obviamente, limitadas pelo tempo no que concerne as características de sua época, logo, querendo analisar as características de um crime e de sua punição, basta utilizar esse alicerce que o autor construiu durante todo seu escrito.
Seu intuito, o mais importante para ele, foi ensinar isso, em segundo plano está a leitura das formas de delito em específico, pois para julgar, antes, é preciso conhecer a maneira correta de julgar.
Porém, algumas dessas "formas de delito" conseguem escapar das garras do tempo e se estender por toda a eternidade que se mede pela duração da existência humana, a exemplo dos crimes de roubo e furto, que existiam há séculos antes do autor, e existirão há séculos daqui em diante e enquanto a humanidade não for só o resquício de uma raça há muito extinta, sendo as razões desse fato de fácil intuição.
Ao terminar essa leitura, sendo você estudante de direito; da área ou não, chegará a conclusão de que todos deveriam ter ciência de seu conteúdo, não é difícil concluir o por que. É o tipo de livro que deveria ser estudado nas escolas, pois, se assim fosse, muito do que se pensa a respeito de "Delitos e Penas" sobretudo em nosso país, seria modificado, principalmente a âmbito popular.
É curioso notar que, um livro escrito há quase 300 anos contenha de maneira tão simplória, o básico do que se deve compreender como justiça no âmbito criminal, sendo esse mesmo conteúdo, passível de intuição se houver base anterior que a promova.
Porém, em algum momento de sua leitura desse clássico, você irá encontrar no próprio, a resposta do porque isso não ocorre.
Os males do despotismo se perpertuaram até a atualidade como uma planta que se alimenta de um solo fértil propício a sua existência.
O despotismo evoluiu vertiginosamente, aprendendo a se disfarçar; a se ocultar, todavia, nada pode permanecer encoberto em sua totalidade.
"Cada ato de nossa vontade é invariavelmente proporcional à força da impressão em nossos sentidos".
- Cessare Beccaria
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