spoiler visualizarMauricio 20/03/2012
Dos Delitos e das Penas - Uma Obra Contextualizada
Inicialmente se faz importante destacar a época em que Beccaria escreveu sua obra. Escrito na segunda metade do século XVII, Dos delitos e Das Penas mostra um sóbrio caráter filosófico, mais voltado às sensibilidades humanas e fazendo severa crítica às penas com caráter cruel, muito superior ao delito em si.
Beccaria trata do início da sociedade e da origem do direito de punir. Em sua visão estritamente contratualista, o pacto social que ligou os homens entre si, lhes garantido segurança em troca de suas liberdades, detém o direito de punir, fundamentado sob todas essas liberdades parceladas.
Ainda nessa linha, a obra indica que os crimes devem ser punidos na medida em que estejam previstos na legislação, e que seu peso não extrapole o tamanho do delito. Tal exagero ocasionaria uma injustiça e um rompimento do contrato social.
Se os crimes devem ser julgados e punidos na medida da lei, não deve o magistrado deliberar sobre a mesma, uma vez que essa é a função do legislador. Ao juiz cabe apenas fazer o silogismo entre as leis e o ato praticado contra as mesmas, sendo que qualquer raciocino que exceda tal prerrogativa tornará a conclusão incerta.
É certo afirmar que a visão positivada e forma dispositiva de comportamento que o autor delega ao magistrado pareçam deveras deslocadas nos dias atuais, porém, levando em conta o contexto absolutista e tirano em que a obra foi concebida tal raciocínio me parece muito conveniente, uma vez que uma lei bem escrita e justa se mostre como ferramenta confiável a favor do povo e útil na tentativa de refrear as ações criminosas e déspotas de quem detém o poder.
Assim como a deliberação sobre as leis causam o mal, sua obscuridade e falta de clareza se apresenta igualmente prejudicial. Na visão de Beccaria isso impõe ao juiz a necessidade de interpretar o dispositivo. Também deve ser levada em conta a forma como são redigidas as normas positivadas, umas vez que deveriam ser de alcance de todos, as instruções contidas no código “Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma ciência.” (BECCARIA, Dos Delitos e Das Penas, p. 25). Para isso deve-se utiliza vernáculo comum. A obra defende também a possibilidade da evolução da norma em paralelo com a evolução da sociedade, sempre possibilitada por consenso unânime.
Relacionado às prisões, a mesma é tida na obra como uma forma de pena imposta anteriormente ao julgamento. A forma que a mesma é utilizada deve ser baseada em critérios objetivos, não restando ao inocente aprisionado qualquer forma de injúria e contando para o condenado como tempo de pena já cumprida.
A condenação de um réu deve basear-se em provas do delito. Existem para Beccaria duas formas de provas: a prova perfeita; é certa e irrefutável, cuja mesma é suficiente em si para a condenação do suspeito. Em outro pólo avistam-se também indícios que são as provas imperfeitas. Para ele, as junções de várias provas imperfeitas formam uma prova perfeita e um indício em contrario não desmerece os demais que apontaram em outra direção.
As testemunhas, as acusações secretas, os interrogatórios sugestivos e os juramentos mereceram pouca credibilidade por parte da obra. Os primeiros gozam de confiabilidade a medida que não tenham interesse algum na causa. As acusações secretas revelam um abuso protegido por uma constituição fraca assim como os interrogatórios sugestivos revelam uma inconstitucionalidade. Os juramentos, por sua vez, caem em descrença pela máxima de que o ser humano tem em si o impulso natural da alta preservação e vai contra as leis naturais que ele cumpra um juramento que vá contra a sua própria vida.
Muito comum na época eram as torturas aplicadas previamente ao julgamento em busca de informações e confições. Dois problemas advêm de tal pratica: Em primeiro lugar temos a tortura de um homem talvez inocente, pois não foi julgado nem condenado ainda. Em segundo abre-se a discutição sobre a utilidade de tal pratica, uma vez que por medo da dor corporal ou pelo cansaço da mesma, um homem inocente pode facilmente admitir culpa ou participação em crime nunca por ele sabido. Na face oposta do mesmo problema tem-se um criminoso fisicamente forte, capaz de suportar a tortura e assim ser absolvido. Nada delibera o autor sobre torturas como forma de castigo em um condenado.
Sobre o processo e sua duração, Beccaria é claro que o andamento do mesmo deve ser o mais breve possível por duas razões: A primeira dirige-se a figura do réu, que uma vez estando sendo investigado pode ser inocente e por isso a brevidade de seu suplício ser algo plausível. Em segundo plano têm-se os olhos da sociedade sobre o crime. É notório que uma impressão causada pelo castigo que possa ser forte e diretamente ligada ao crime deve ocorrer com o Maximo de proximidade temporal do ato. A demora processual e conseguinte condenação do réu nada mais são do que um espetáculo aos olhos do povo.
Relacionado à prescrição do processo, o texto trás dois tipos de crime descritos: os horrendos, como o homicídio, e os menos hediondos, abaixo disso, mais ligados aos bens sociais. Para a primeira espécie, Beccaria leva em conta a maior probabilidade de inocência do acusado para acelerar a instrução do processo, mas prolongado o tempo de prescrição, uma vez que provar tal tipo de crime é mais complicado e o interesse social em sua solução é maior. Para o segundo tipo invertem-se a ordem; maior tempo de instrução processual e rápida prescrição. A inocência do réu é menos provável e a impunidade menos prejudicial à sociedade.
Quando discorreu sobre os cúmplices, sucinto foi o autor em defender uma pena mais branda sobre os mesmos, uma vez que se colocados em igualdade cúmplices e autores não haveria temeridade entre comparsas para se definir quem seria o autor principal do crime. Havendo tal separação muito mais difícil seria tal decisão e isso certamente é um modo de coibir certas ações por parte de almas fracas.
A obra relata como eficaz e justa a pena proporcional ao delito, aplicada em conformidade com as leis e após um processo justo. É justa pra com o punido e também útil como exemplo para a sociedade. A impressão certa causada pela punibilidade é arma poderosa no refreamento de crimes do mesmo gênero. Qualquer excesso de severidade torna a pena déspota e extrapola o entendimento do homem, uma vez que se mostram mais temidos os males que o homem conhece de própria experiência.
A pena de morte é fortemente criticada por Beccaria. Para ele sua utilidade é contestável e sua constitucionalidade duvidosa. Como contratualista, ele acredita que homem algum se privaria de sua liberdade enquanto ainda corresse risco de vida. Violado o contrato social se perde o sentido da colocação “sociedade”. Para o condenado, a pena pode ser um alivio maior do que qualquer outra forma de condenação, uma vez que seu tormento duraria muito pouco e ainda existe a chance do mesmo ver na morte uma forma de solução e liberdade, o que tornaria a pena um ganho. Para a sociedade, a pena de morte não passa de um espetáculo de carnificina de impacto momentâneo e pouco eficiente. Com uma impressão breve, rapidamente a população esquece-se da força da força da pena e os crimes passiveis de tal condenação voltam rapidamente a serem praticados
Uma alternativa bastante lógica e bem discorrida por Beccaria à pena de morte é a prisão e escravidão perpétua, que além de não retirar a vida de nenhum cidadão ligado ao pacto social ainda tem um exemplo eterno para ser observado pela sociedade “... é necessário que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis.” (BECCARIA, Dos Delitos e Das Penas, p. 54).
A infalibilidade das leis é pregada como uma forma justa e eficaz de combater os delitos. Muito comum era o engano da sociedade absolutista da época que via no rigor da pena a solução para os crimes. Na visão de Beccaria a certeza da punição é o que realmente previne os delitos “Que as leis sejam, portanto inexoráveis, que sejam os seus executores inflexíveis; mas, que o legislador seja indulgente e humano.” (BECCARIA, Dos Delitos e Das Penas, p. 65).
Sobre os asilos, preferiu o autor não expor opinião tácita, porém é perceptível certa aversão ao costume. Segundo ele o asilo se mostra como uma forma de não punir o crime e incitar sua prática.
Quando ao uso de por cabeças a premio o texto é claro: Trata-se de uma prática amoral, uma vez que o Estado está delegando sua função punitiva, o que certamente fere todos os princípios do Direito de Punir. Completando, tal pratica é vista como utilidade de nações fracas e com leis ineficientes.
Muito já se discutiu aqui sobre a proporção das penas, que devem ser espelhadas no próprio delito. Mas como ocorreria tal comparação? Para Beccaria a medida exata do tamanho do delito é o tamanho do prejuízo que este causou a sociedade, que é a maior interessada no delito, acima mesmo da vítima. Mais uma vez o autor relata a observância das leis positivadas.
Mesmo vendo a sociedade como um todo no pólo passivo do crime, é também estabelecida certa divisão para os delitos. Estes estão divididos em delitos que destroem a sociedade e delitos que afetam diretamente a terceiro. Há também a categoria dos crimes lesa-majestade. A fim de combater o despotismo, os crimes lesa-majestade são crimes que afetam a sociedade, ou seja, são crimes graves. Porem não foge à legislação. Quanto aos outros tipos de crime, Beccaria atenta para as penas aplicadas por casta social. Para ele isso é inválido, devendo a medida da pena ser unicamente o reflexo do prejuízo causado pelo delito. É notória uma tendência a justiça como vemos hoje, ou seja, a justiça cega; tão enaltecida e glorificada doutrinamente, mas nem tão utilizada nos tribunais.
As injúrias pertencem aos crimes que afetam a moral do sujeito. O texto não faz clara exposição da tendência do autor. Parece-me que a idéia era demais avançada para a época e ainda se fazia sombria. Beccaria se intercala de mais ao esbarrar na sua afirmação anterior de que as opiniões não são passiveis de culpabilidade e o texto não consegue abordar com clareza a distinção entre “opinião” e “calunias”. Tal capítulo foi seguido pelo assunto dos duelos, comuns na época. Com uma sucinta apresentação o ato foi mais exposto que criticado ou contestado.
O livro trás também reflexões sobre os crimes de cunho material. O capítulo trás clara distinção entre roubo e furto, uma idéia inovadora para a época. Beccaria propõem a distinção de punição entre ambos. Para ele os roubos praticados sem violência devem ser punidos de forma mais branda, apenas com a aplicação de uma multa pecuniária. Já os crimes de roubo utilizando-se de violência merecem pena mais severa. Levantando o caso de pobres que roubam para não morrer de fome, o autor reflete sobre a possibilidade de a pena gerar novo delito, visto que o ladrão no possuirá como arcar com a pena. Visto dessa maneira é proposta como única pena justa uma espécie de escravidão e quando o crime acompanha violência, a pena acompanhará castigos corporais. Ainda contra as penas pecuniárias, o texto alerta para o risco das penas tornarem-se meros negócios civis.
Ainda na espécie de crimes de cunho material, é visto o contrabando. A observação feita por Beccaria a cerca do mesmo pode ser tranquilamente transposta para os tempos atuais. Segundo ele o homem tem dificuldade em assimilar as infrações que não o afligem diretamente. É o caso do contrabando, que consistem em crime contra o soberano. Na visão limitada dos homens esse crime não os aflige e por isso poucas revoltas causam. Ainda nesse tema a pena proposta é a apreensão das mercadorias encontradas.
As falências seguem o principio da honestidade. Se a falência aberta for honesta não caberá pena ao falido a não ser a possível compensação de seus credores. Quando por outro lado a falência é declarada de forma duvidosa e possivelmente não exprime a realidade, mas sim um desejo do devedor de não pagar seus débitos, este responderá por seu crime. Em caso de duvida será inocentado o réu, pois para Beccaria é muito mais custoso para a sociedade punir um inocente a absolver um culpado.
Uma terceira espécie de crime observada são aqueles que perturbam a tranqüilidade pública onde o autor é direto ao indicar a aplicação das normas vigentes, mais uma vez sem deliberação do magistrado, evitando assim a tirania. O autor considera indispensável que as pessoas tenham conhecimento das leis a que estão submetidas.
A ociosidade aparece como crime difícil de ser definido e consequentemente punido. Beccaria faz alusão à “boa ociosidade” que produz conhecimento, mas destaca como crime aquilo que muito tempo vigorou em nossa legislação como crime de “vadiagem”, que para ele também merecia punição.
O suicídio é tido como crime na época. Sua praticamente impossível prevenção torna o crime impunível, uma vez que castigar um corpo morto também afligiria o povo e não serviria como exemplo duradouro. Castigar seus familiares também aparece como uma alternativa sem sentido e abusiva, uma vez que os mesmo não são os causadores do delito e certamente um suicida, com pouco apego a sua vida, não deve dar maior valor a vida de seus familiares. Uma alusão às leis que prendem os cidadãos em seus países é utilizada como comparação para demonstrar a inutilidade de se punir o suicídio. Tal crime será punido apenas por Deus após a morte.
Crimes difíceis de serem constatados, como o adultério, devem ser prevenidos pelo legislador e não reprimidos. Sua eficácia seria de mais valia.
Muito astuto foi Beccaria ao tratar dos crimes cometidos pela Inquisição do Santo Ofício. Apesar de não nominar a instituição ou suas atividades, o criminalista desaprova a condenação por crime moral baseada em outras verdades que não as exploradas pela filosofia.
Outra instituição muito poderosa da época eram as famílias e o poder patriarcal. Para o autor, o poder patriarcal fazia um paralelo juntamente com o ordenamento vigente. Para ele as duas coisas não podem coexistir, uma vez que suas formas são tão distintas. Enquanto a tutela de um filho, para o poder patriarcal, dura a vida toda, para a República, essa tutela dura até certa idade, quando o homem pássara a ser um cidadão igualmente ao seu pai. Ainda vale ressaltar que a utilização de modelos patriarcais ocasiona certo desmembramento de poderes, como se a república fosse formada por várias monarquias.
Dos delitos e Das Penas destaca em sua conclusão a importância da clareza das leis para a prevenção de crimes aliada à pronta punição para quem não as respeitar. Uma sociedade caminhando para o esclarecimento também é vista por Beccaria como parte da prevenção.
A obra em si comporta uma evolução para o padrão da época. Muitas coisas podem ser vistas ainda nos dias atuais, como destacado anteriormente. Porem é fato que hoje seus princípios não mais se aplicariam na sociedade em que vivemos. Mesmo assim é importante dar destaque a tal obra, que mostra uma voz se revelando em nome da humanidade contra as injustiças. Sua obra ainda foi decisiva para a reforma das legislações vigentes da época, que foram importante passo para chegar ao patamar atual. Vendo dessa forma é importante refletirmos sobre o nosso sistema penal, que mesmo evoluído se mostra precário e incompleto. Inspiremo-nos em sua obra para buscar soluções que trascedam nosso tempo e assim rumar ao futuro.