Leandro Matos 02/06/2015Middlesex – Ex Ovo OmniaComo alguns devem saber, todo ser humano, independentemente do sexo de nascimento possui algumas características andróginas, pelo menos é assim do ponto de vista embrionário. Até a nona semana de gestação, o feto não possui um sexo definido. Nesse estágio, ficamos aguardando a liberação do hormônio que determinará nosso sexo (como gênero). Definido o sexo, nossos órgãos genitais são espelhos (côncavos e convexos) do sexo oposto. Depois disso é só recordar das aulas de biologia do ensino fundamental. Lembram? XX = nasce uma menina; XY= nasce um menino…
Até aí nada de novo.
Ocorre que se a dosagem desse hormônio não estiver calibrada, poderão ocorrer alguns “percalços”, que acabam por fim, desviando um pouco o curso dessa harmoniosa e complexa cadeia da origem da vida.
Agora imagina só a história de uma pessoa que “nasceu” duas vezes!? Nos anos 60, como uma menina e 14 anos depois, como um menino!? Essa é premissa inicial do fenomenal romance “Middlesex”, reeditado recentemente pela Companhia das Letras.
Logo após o destacado sucesso de “As Virgens Suicidas”, seu romance de estreia, Jeffrey Eugenides, se recolheu para a construção do viria a ser pelo menos para mim, o seu maior e melhor livro. O autor de ascendência grega e irlandesa tomou posse não só de aspectos biográficos e de familiares para encorpar o enredo do título. Durante essa reclusão, o autor ainda se mantinha ativo publicando algumas crônicas e contos em revistas dos EUA, mas foram necessários nove anos para construir e entregar a saga de Calíope Stephanides, uma garota (vou inicialmente tratá-la assim) de origem grega, que nos brinda com uma narração rica, plural e absurdamente envolvente sobre toda a sua vida e seus “nascimentos”. Indo desde a origem de tudo, quando seus avós em pleno deleite convenientemente carnal comentem incesto, até a jornada do gene remissivo que atravessa três gerações para por fim, escolher o quinto cromossomo de Callie, para transformar não só sua portadora, mas praticamente todos que lhe cercam.
Livros que seguem pelo estilo narrativo em primeira pessoa são mais atraentes e de fácil apreciação, mas daí cabe ao escritor ter habilidade e sutileza para incorporar veracidade ao relato e ao personagem. Afinal, temos a sensação que o narrador está nos contando diretamente àquela história. E é justamente aí, que Eugenides se sobressai, nos apresentando em mais de 500 páginas uma prosa elegante, intimista e muitas vezes poética sobre a tragicômica saga da família Stephanides, deixando o romance com o quê imediato de clássico.
Tudo isso claro, entrelaçado com fatos históricos, sociais e culturais de quase um século de história contemporânea. A invasão Turca, a ascensão de Detroit, os conflitos raciais dos anos 40, a formação da cultura americana em contraponto a perspectiva grega, tudo isso só enaltece o romance com propriedade e dinamismo.
Toda a transmutação de Calíope em Cal nos é apresentada paulatinamente. Para que não fique banal ou gratuito, Eugenides lapida todas as nuances da narrativa com um fluxo entre passado e presente tirando todo e qualquer vestígio de algo caricato. Longe de ser redundante, o título detalha os mais simples e importantes acontecimentos na vida de Cal de forma prazerosa, desde suas aventuras e amizades na terna infância às típicas descobertas da adolescência. E é nessa transformação que está a excelência do romance, pois apesar do invólucro externo feminino, sua personalidade sempre denota algo de viril, suas primeiras experiências sexuais e todo o seu questionamento pela opção sexual investida denotam claramente isso.
Quando adulto já se faz homem e trabalha na embaixada dos EUA em Berlim, mas ainda assim é um ser fragmentado pela dualidade dos gêneros. Sua profissão lhe resguarda a segurança da despedida, pois a cada temporada, ele sabe que estará em outra localidade e toda e qualquer relação afetiva formada, logo se desfaz.
"Todos somos feitos de muitas partes, de outras metades. Não apenas eu."
Segundo o mito, Hermafrodito era filho de uma relação extraconjugal entre Hermes e Afrodite. Logo após o seu nascimento, Afrodite o entregou as ninfas do monte Ida. Durante a adolescência, Hermafrodito deixa o monte e segue andando a ermo pelos campos e encontra um lago límpido que o fascina. Acontece que o lago estava sob proteção de Salmácia, uma náiade que vivia ociosa e só se dava ao trabalho de exaltar a si mesma.
Quando a ninfa o viu, ficou extasiada com tamanha beleza e o cercou de todo jeito. Como ele não conhecia a lascívia e a insistência desses seres ele a rejeitou.
Então, passado um tempo e acreditando estar sozinho, Hermafrodito resolveu banhar-se no lago, porém quando Salmácia o viu nu, não resistiu à tentação e foi voluptuosa ao encontro do deus, que tentava a todo custo desvencilha-se dela. Em meio a esse jogo, a ninfa já enlaçada em Hermafrodito clamou aos deuses para nunca separá-los. E assim foi feito. Os dois seres se fundiram, se tornando nem homem nem mulher, mais os dois em um só. Que não tem um sexo, mas todos.
Cal é intersexual. Ou seja, no caso é biologicamente um homem, mas criado como uma mulher. Uma pseudo-hermafrodita. A origem para o livro veio da leitura das memórias de Herculine Barbin, uma hermafrodita francesa que teve sua vida contada por ninguém menos que Michel Foucault. Callie/Cal possui uma anomalia, uma “transmissão autossômica de características recessivas“, uma mutação genética 5-alfa-redutase que é esmiuçada de forma clara e até didática, que nada perde para livros de cunho científico. Todos os aspectos inerentes ao duo Callie/Cal estão presentes no livro desde o fisiológico ao social. Nada passou despercebido. Mais um ponto para o Eugenides.
Esse fascínio e oposição entre os gêneros já remetem e inspiram nas mais diversas formas. Em 2007, chegava a poucas salas de cinemas o filme brasileiro XXY, nos anos 70, David Bowie era Ziggy Stardust e bem antes disso, Tirésias passara sete anos transformado em mulher ao matar uma cobra fêmea durante uma cópula. Associações a parte, Homero no início do seu poema épico a Odisseia, pede inspiração as Musas, Eugenides segue o rito e homenageia Calíope como sua musa. Afinal, ela era a mais velha e mais sábia das nove e à ela é atribuída o dom da poesia épica, da ciência e da eloquência. Coincidência?
Não há sobreposição entre masculino e feminino na linguagem de Middlesex, o que há de fato é uma inteligente e bem construída oposição entre vozes. Assim como O Pintassilgo, Middlesex também foi agraciado com um Pulitzer, não que qualquer premiação seja um atestado de excelência, mas estes títulos são exemplos de uma narrativa intrincada, original e única na literatura.
Um enredo magistral que transita entre inúmeros sinônimos e antônimos. Arrojado e delicado, engraçado e comovente. Uma narrativa sofisticada que exemplifica aquela proposta mais simples que todo livro tem: contar uma história.
"É assim que as pessoas vivem… – à base de histórias. Qual é a primeira coisa que uma criança diz quando aprende a falar? “Me conta uma história.” É assim que compreendemos quem somos, de onde viemos. Histórias são tudo."