alineaimee 25/04/2014Middlesex é o primeiro livro de Jeffrey Eugenides que leio. Faço essa afirmação porque já pretendo ler As virgens suicidas, romance de estreia que projetou o escritor americano, nascido em Detroit. Middlesex me foi presenteado pela querida Denise, e eu nada sabia sobre ele. Tinha uma memória vaga de tê-lo visto numa foto de um dos meus blogs de look favorito, o Flashes os Style. Nada mais além disso.
O livro acabou entrando na minha longa lista de pendências literárias, até que notei seu nomezinho na lista de leitura da Rory Gilmore. Pensei: “Por que não? Eis uma chance de atualizar essa lista”. E retirei o calhamaço de 567 páginas do vago limbo onde ele me esperava.
Middlesex tem um enredo um tanto bizarro. Toda vez que eu falava dele com amigos, as pessoas faziam careta e diziam algo como “HEIN???”. O romance narra a história de Calliope Stephanides, um menino hermafrodita criado como menina até os quatorze anos. Até então, tudo bem. Enredo intrigante, não? Acontece que estamos diante de um romance de formação, onde Cal (o nome que Calliope adotou após assumir sua condição masculina) narrará com riqueza de detalhes sua história, remontando aos avós gregos que viviam na aldeia de Bitínia, na província turca de Esmirna. Não se preocupem com spoilers, pois essa é uma informação dada logo de cara no início do romance.
Por que, então, o enredo é bizarro? Porque Cal irá fazer um verdadeiro panorama em torno das condições que o geraram: fará relatos históricos sobre a Guerra Greco-Turca, sobre o Grande incêndio de Esmirna, sobre a Guerra do Vietnã, a lei seca, o sonho americano e a segregação racial; falará sobre as relações endogâmicas na história de sua família; fará descrições científicas a respeito da deficiência de 5-alfa-redutase que determina a sua condição; tecerá inúmeros paralelos entre a sua história e a mitologia grega; refletirá sobre as identidades de gênero. É um romance rico, sem sombra de dúvida, mas um romance incômodo, perturbador.
Em primeiro lugar, Middlesex é narrado em primeira pessoa por um narrador onisciente. Cal nos apresenta os fatos como se fosse dotado de consciência eterna, conhecendo dados muito anteriores ao seu nascimento. É difícil não lembrar da sabedoria acumulada pelos andróginos Tirésias e Orlando.
O recurso mais perturbador, no entanto, é o tom zombeteiro e bem humorado que permeia a obra, mesmo nos momentos mais desoladores. Não há transição de registros. O narrador vai apresentar assassinatos, perdas e violências sexuais com a mesma leveza com que narra uma ida ao cabelereiro. O leitor não é preparado para esses momentos. Simplesmente toma uma voadora na cara quando menos espera. Minha primeira reação foi repulsa. Eu não queria uma solenidade melodramática, mas esperava ao menos uma imparcialidade cuidadosamente introduzida. É incômodo deparar-se com uma ação desumana quando poucos minutos atrás estávamos envoltos numa atmosfera de humor ou de lirismo. Comecei a achar o estilo narrativo de Eugenides esquizofrênico até que me dei conta de que essa era uma maneira interessante de simular o desconforto do protagonista. Fruto de uma educação pudica, Calliope não compreendia com clareza as transformações que a puberdade lhe trazia, o que culminaria numa reação de revolta e ruptura definidoras. Terá sido uma escolha consciente do autor?
"As moças estão trabalhando, rindo; às cinco da madrugada já estão doidonas demais para se importar com as coxas em carne viva e os resíduos masculinos que nenhuma quantidade de perfume consegue disfarçar. Não é fácil se lavar na rua, e as partes íntimas das moças já ostentam um cheiro de queijo francês bem mole e maduro... Elas também pouco se importam com os bebês que largaram em casa, nenéns de seis meses deitados em berços de segunda-mão, gripados, chupando as chupetas e respirando com dificuldade... e pouco se importam com o gosto de sêmen que trazem na boca junto com o hortelã do chiclete. A maioria delas não tem mais que dezoito anos; e aquele meio-fio na rua Doze é, na verdade, o seu primeiro local de trabalho, o máximo que o país tem a oferecer como de vocação. Para onde elas vão depois? Pouco se importam com isso também, a não ser uma ou duas, que sonham virar carteadoras em Atlantic City ou abrir um salão de beleza..." (p.259)
Compreendido e superado esse curioso recurso narrativo, devo reconhecer que Eugenides escreve com elegância e fluidez e, principalmente, sabe como construir bons personagens. Há muita sensibilidade na descrição das pessoas e dos lugares: o misticismo da avó Desdêmona, com seus bichos-da-seda, suas promessas, superstições e previsões quanto ao sexo dos bebês; a energia e o charme do avô Lefty; a transformação do pai, Milton, do enamorado clarinetista ao empresário mal-humorado e sovina, mas também sonhador; a precocidade e a sensualidade natural de “Objeto Obscuro”, primeiro amor de Cal...
"Embora Lefty jamais tenha me dito uma palavra, eu adorava meu papou chapliniano. Sua mudez me parecia um ato de refinamento, combinando com as roupas elegantes, os sapatos com palas de tecido e o cabelo reluzente. Mas Lefty não era nem um pouco emproado, e sim brincalhão, até cômico. Quando me levava para passear de carro, frequentemente fingia adormecer ao volante. O carro se desgovernava e se aproximava do meio-fio. Eu ria, gritava, puxava o cabelo e dava pontapés no ar. No último segundo, Lefty acordava de supetão, agarrava o volante e evitava o desastre." (p.284)
Os personagens que rodeiam Cal são de uma riqueza que nos afeiçoamos com facilidade. Torci, vibrei e sofri de verdade com cada um deles. O curioso é que, apesar da riqueza de detalhes, sensações e personalidades, Cal/Calliope é o personagem que menos toca. O narrador se empenha tanto na construção esmerada dos demais personagens que acaba oferecendo pouco de si. Temos algumas de suas reações, seus medos, contradições e angústia, mas senti falta de reflexões mais ensimesmadas, especialmente quando se trata de situação tão delicada quanto a intersexualidade. A história de Cal é determinada por acontecimentos históricos, sociais, biológicos, mas também por acasos. Ela, ao mesmo tempo, espelha a história mundial, que é comentada a todo instante. Na ambição de abarcar todas essas esferas, o autor acabou deixando pouco espaço para que Calliope/Cal se nos revelasse de modo mais aprofundado.
Outra questão interessantíssima que emerge da leitura é a da escrita feminina em oposição à masculina, que não é posta claramente pelo narrador, mas que nos leva a refletir se há de fato tal divergência linguística. Aqui, não darei o veredito. Deixarei o gostinho para quem se aventurar na leitura.
Dá para entender porque Middlesex ganhou o Pullitzer e o National Book Award. É um romance doce, engraçado, sério, comovente — complexo como a vida. É múltiplo e trata, de maneira envolvente e cativante, de questões polêmicas e caras à compreensão do humano.
"Desde a mais tenra idade percebiam o pouco valor que o mundo dava aos livros, e portanto não perdiam tempo com isso. Já eu insisto até hoje em acreditar que estas marcas negras em papel branco têm a maior importância, e que se eu continuar escrevendo talvez consiga capturar o arco-íris da consciência numa jarra. A única poupança que tenho é esta história, e ao contrário dos prudentes anglo-saxões brancos e protestantes, estou recorrendo ao meu capital e gastando tudo..." (p.323)
site:
http://www.little-doll-house.com/2014/04/middlesex.html