Hunger

Hunger Knut Hamsun




Resenhas - Hunger


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C Henrique 11/07/2016

Feels like I'm going to lose my mind
O que mais me chamou atenção em "Hunger" foi como, pela data de sua publicação, no ano de 1890, essa obra carrega diversos elementos literários e estilísticos que só encontraremos depois em outros autores mais conhecidos e em livros mais famosos, em que Knut Hamsun talvez possa ter sido um verdadeiro precursor ilustre desconhecido de muitos deles.

Eu não creio ter bagagem nem leitura suficientes para fazer uma análise comparativa ou intertextualizada profunda acerca da obra, mas logo de cara o protagonista e narrador me lembrou os anti-heróis kafkianos, na forma como não conseguem pertencer, encaixar-se nem fazer parte da engrenagem social do mundo, tornando-se vítimas dela ou sendo empurrados inexoravelmente para sua margem e sofrendo as consequências.

Porém o flagelo do personagem sem-nome (algo tão obviamente simbólico) aqui me parece por vezes menos infligido por forças externas e mais impingido a si mesmo por forças internas. Nesse ponto a história me lembrou um pouco também "A Redoma de Vidro", de Sylvia Plath, na forma como consegue descrever uma verdadeira espiral mente adentro aos recônditos mais obscuros e tortuosos da psique humana.

Essa característica de grande densidade psicológica também me fez relacioná-la bastante com as obras e personagens dostoievskianos: foi impossível não lembrar da agonia moral e psíquica enfrentada por Raskolnikov, em "Crime e Castigo"; e a forma como isso tudo é narrado em "Fome" faz muito uso do recurso de "fluxo de consciência", que muitos consideram criado mais adiante por James Joyce, dentre outros.

Além do já citado acima, o que mais me chamou atenção foi como, antes de Freud, e muito antes mesmo da própria Psiquiatria ser sistematizada na organização e criação de diagnósticos e transtornos mentais, Knut Hamsun conseguiu criar e descrever em minúcias um personagem que hoje se poderia concluir facilmente sofrer do que se chama "transtorno de personagem limítrofe", mais conhecido pelo termo inglês de "borderline".

A característica mais essencial desse transtorno é um padrão de comportamento marcado pela impulsividade e instabilidade nos afetos, nos relacionamentos interpessoais e na autoimagem. No campo das emoções, as pessoas com transtorno borderline as sentem com mais facilidade, maior profundidade e por mais tempo que as outras, podendo elas ressurgirem repetidamente e persistirem por longos períodos de tempo.

A sensibilidade, intensidade e duração com a qual as pessoas experimentam essas emoções possuem tanto aspectos positivos, em que são excepcionalmente idealistas, alegres e amorosas, quanto negativos, em que experimentam intensa dor, humilhação e ódio, sendo especialmente sensíveis aos sentimentos de rejeição, isolamento e sensação de fracasso, o que acarreta em sofrimento mental e emocional.

No que tange ao comportamento, são pessoas extremamente impulsivas, o que pode desencadear ações imprudentes com relação ao dinheiro, abuso de substâncias e até mesmo distúrbios alimentares (o que podemos relacionar bem ao personagem, na forma como ele demonstra diversas vezes que, apesar da fome, comer lhe faz mal física e mentalmente), além de abandono de posições e relacionamentos, numa constante fuga e autodepreciação.

Agem impulsivamente pois isso lhes dá alívio imediato de sua dor emocional. Contudo, elas sofrem de uma crescente vergonha e culpa que seguem esse tipo de ação, e se inicia um ciclo, no qual sentem dor emocional, se engajam num comportamento impulsivo para aliviá-la, sentem vergonha e culpa por suas ações, sentem dor emocional por conta dos sentimentos de vergonha e culpa, e então experimentam uma maior compulsão por se engajar num outro comportamento impulsivo para aliviar a nova dor...

Nos relacionamentos interpessoais, as pessoas que sofrem com transtorno borderline podem ser muito sensíveis ao modo como outros as tratam, sentindo intensa alegria e gratidão diante do que percebem como expressões de bondade, e intensa tristeza e raiva ao que entendem como uma crítica ou ofensa. Seus sentimentos a respeito dos outros normalmente alternam entre o positivo e o negativo, após uma decepção.

Esse fenômeno, chamado de "clivagem", inclui a mudança entre idealização de outra pessoa (sentimento de amor e admiração) e desvalorização (sentimento de raiva ou antipatia), e pode causar grandes danos aos relacionamentos. A autoimagem também pode mudar rapidamente do positivo para o negativo. E nesse campo, as pessoas tendem a ter dificuldade em ver uma imagem clara de sua própria identidade, em saber o que valorizam e apreciam.

Finalmente, no campo dos pensamentos, as intensas emoções dificultam a concentração e seu foco de atenção, podendo haver dissociação, em que pessoa, como se estivesse drogada ou "viajando", perde-se em seus próprios pensamentos. A dissociação frequentemente ocorre em resposta a um acontecimento doloroso ou a sua lembrança, em que a mente redireciona automaticamente a atenção para longe de tal evento, como para se proteger.

Poderia aqui reproduzir diversas passagens do livro em que esse conjunto de sintomas e características do transtorno borderline são patentes, mas se alongaria muito. O intuito foi simplesmente de mostrar como elas se encaixam incrivelmente às características do personagem no que tange a suas emoções, seus pensamentos e seu comportamento, e como o autor conseguiu genialmente criar uma narrativa que só encontraria um arcabouço teórico-epistemológico tempos depois.

P.s.: Daria também muito trabalho colocar aqui as referências de onde tirei tas informações, mas foram tiradas da internet em sites relacionados ao assunto.
dauroveras 19/01/2018minha estante
Excelente resenha. Estou quase no fim da leitura e é bom ver a obra sob essa perspectiva.




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