><'',º> 22/01/2018
Será possível ler Júlio Verne (1828-1905) hoje em dia? Creio que sim. Mas não é fácil dizer por quê. Quem busca entretenimento irá sorrir diante de aventuras tão pacatas, tão rasas de adrenalina, como as propostas neste "A Jangada". Intoxicados de inovação tecnológica, também sorrimos ao notar o entusiasmo de Verne com o funcionamento do escafandro, nesta novela publicada originalmente em 1881.
Tempo em que, provavelmente, ainda era novidade dizer que determinado livro "diverte e instrui". O tom edificante, o didatismo explícito de Júlio Verne talvez sejam quase ofensivos para o pré-adolescente de hoje, que tropeça a cada página com lições de botânica, hidrografia e moral.
Há uma curiosidade particular, contudo, em ler um romance de Júlio Verne que se passa em terras -melhor dizendo, em águas- brasileiras. Chega a ser tocante o capricho (apesar das incorreções de ortografia) com que o autor Verne descreve o fenômeno da pororoca, o canto do inhambu, a iminente extinção do peixe-boi, o valor nutritivo do açaí, as fibras da piaçava, a sanha dos urubus. Tudo no Brasil é digno de elogios: a clemência com que eram tratados os escravos, a beleza da paisagem amazônica, a "honestidade proverbial dos negociantes e fazendeiros brasileiros".
"A Jangada" narra a viagem de um deles, o próspero Joam Garral (sic), pelo rio Amazonas. Ele parte de sua propriedade em Iquitos rumo a Belém do Pará, a bordo de uma balsa gigantesca. Nessa embarcação, que para ser construída exigiu a derrubada de uma "floresta inteira", há espaço para tudo: jardins, uma casa-grande para a família Garral, malocas para os índios, cabanas para os negros, depósitos para mil arrobas de borracha e até uma capela com sino e tudo.
"Isso é viajar com a própria casa!" admira-se um dos tripulantes, o bom padre Passanha (sic). O sonho de uma viagem quase que doméstica, garantidos todos os confortos da civilização burguesa, é também o sonho colonial de estabelecer, em países exóticos, uma filial da Europa. No preciso, brilhante e um tanto severo posfácio de Michel Riaudel para "A Jangada", este e outros aspectos da obra de Júlio Verne são analisados: menciona-se o abolicionismo do autor, suas relações com a família dos Orléans e Bragança, sua baixa consciência ecológica, suas fontes bibliográficas, o poder mítico de seus relatos.
Mas há também uma simpatia indefinível nos textos de Júlio Verne; todas aquelas jangadas, aqueles navios, balões e submarinos parecem grandes brinquedos complicados que o autor, como um irmão mais velho, consente às vezes em compartilhar conosco.
Das aventuras de Tintim às peripécias da família Robinson em "Perdidos no Espaço", reencontramos tudo aqui: o cientista ranzinza, o traidor a bordo, o coadjuvante cômico, o patriarca navegador. Mas tudo também ganha as cores acobreadas da velha carcaça do "Nautilus", tem uma poeira de laboratório antigo, de enciclopédia roída de cupim; o ancestral da ficção científica se tornou retrô. É como se "A Jangada" fosse ainda um livro imensamente divertido, mas sem leitores reais. Parece dirigir-se a um leitor fantasma: penso no menino crédulo e científico, sedentário, mas sequioso de aventura, desejoso de que o Bem triunfe, mas pouco propenso ao heroísmo, imaginativo, mas sensato, que talvez ainda exista dentro de nós.
MARCELO COELHO
site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2709200319.htm