AleixoItalo 21/10/2023A trama desafia a simplicidade de sua premissa inicial, onde uma escritora bem sucedida contrata como governanta, a misteriosa Emerenc, uma mulher bruta, cheia de convicções e segredos, que vão desde detalhes pessoais até a algo misterioso que ela mantém oculto em sua casa, trancado atrás da porta. A estranha relação, entre a polida escritora e a ríspida governanta, se desenvolve aos solavancos, envolvendo o leitor na teia de conexões entre as duas personagens e a cada passo dado, uma rachadura para o passado se abre revelando aos poucos os segredos de Emerenc.
Contraditória e envolta em mistérios, a grande estrela da trama, Emerenc, atinge ares místicos e se torna quase uma entidade, a mulher possui uma natureza tempestiva que evoca o melhor das personagens de Dostoiévski, sempre revoltosas e descontentes com tudo, desamparadas pela falta de sentido na vida. É difícil delinear sua natureza, uma vez que parece conhecer, ansiar e rejeitar tudo na mesma medida, só a vamos conhecendo melhor, quando traços do seu passado vão sendo desnovelados: tragédias, abandonos, traições, Emerenc acumula memórias como acumula objetos!
Em certa medida, esse livro tem um pouco da essência de Ponte Sobre o Drina, usando a estratégia de descortinar a passagem do tempo através de microcontos, mas enquanto a obra de Ivo Andrić estabelece a famosa ponte como foco dos eventos, aqui é Emerenc quem traz consigo histórias e experiências do século passado. Sem sabermos ao certo a idade da personagem, ela acumula sobre si todas as grandes mudanças pelas quais a Hungria passou no século passado, desde as mudanças na estrutura do poder, as guerras, a invasão nazista e as próprias tragédias pessoais.
Esse que talvez seja o ponto forte do livro, o retrato do passado pelas memórias de Emerenc, acaba sendo atrapalhado pela própria rigidez da personagem para com suas lembranças, de forma que a narrativa se torne atravancada. As lembranças são dramáticas e instigantes e muitas por si só valeriam uma obra separada, mas muito desse "retrato" se perde em meio a interações turbulentas com os outros moradores e principalmente no peso que se dá ao desinteressante "mistério final", que acaba destoando muito do resto da obra e gerando um final apático.
A escritora Magda Szabó que foi perseguida pelo regime e viveu às turras com o governo, concebeu A Porta, como um romance com pitadas autobiográficas, e é justamente por conta disso, que gosto de imaginar que o livro vai além das relações humanas das personagens. Enxergo Emerenc como uma representação da própria pátria de Magda: turbulenta, cheia de mudanças, hostil e ao mesmo tempo acolhedora, forjada de tragédias e por quem a escritora tem uma relação que vai do amor ao ódio, como alguém que não suporta mas sabe que no fundo ama seu país!