Emme, o Fernando 15/02/2018A imolação do cordeiro !------------------------------------------------
Opinião sem Spoilers
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A história narra o recrutamento para uma belonave de um gajeiro (o moço do cesto da gávea) chamado Billy Budd, justamente no ano do grande Motim de Nore, 1.797.
O autor cose uma descrição detalhada e em etapas do físico e do caráter dos personagens envolvidos e do grande Motim. Essa parte pode parecer a alguns uma tergiversação desnecessária, mas não o é, pois toda resolução do conflito se dá pelo clima estabelecido por esse motim e pela situação instalada na marinha britânica, que sem voluntários, se vê forçada a aceitar pessoas desclassificadas, estrangeiros, temerários, e por vezes até a forçar ao alistamento indigentes, criminosos e "suspeitos" diversos e, apesar disso, evitar a todo custo motins e revoltas contra a ordem militar. Nem mesmo os nomes das naves são sem motivo: Billy é recrutado (retirado) da Direitos do Homem e vai para a Belipotente.
É nesse clima que o jovem gajeiro, o "Belo Marujo", William Budd, símbolo de beleza e perfeição moral é recrutado de um navio mercante para a marinha de guerra.
"Baby Budd" é, fisica e moralmente, representante da beleza não tocada pela malícia, um rapaz de cachinhos doirados, olhos celúrios, "a descendência nobre era nele tão evidente como a de um cavalo puro-sangue", ingênuo, verdadeiro, "desconhecedor dos homens de fala melíflua", ignorante das máscaras sociais, analfabeto, de um vigor físico invejável, porte atlético.... portador daquela verdade que as flores têm ao desabrochar....rsrsrs
Ocorre que na belonave, o mestre de armas é John Claggart, que representa o justo oposto de Billy Budd.
"Ora, Claggart era um desses, em quem a mania da índole perversa não fora engendrada por uma educação torpe nem por livros corruptores, tendo ao contrário nascido com ele e sendo-lhe inata. Resumidamente, 'uma depravação em consonância com a índole' ".
Estabelece-se, de acordo com o narrador onisciente, uma relação de INVEJA entre Claggart e Billy Budd, resultando em uma trama de intrigas de consequências trágicas.
Um aspecto interessante é que o narrador é onisciente, mas não conta tudo, às vezes não conta nada, às vezes deixa que o leitor saiba apenas o que os personagens sabem.
O leitor nada sabe sobre o passado de John Claggart. Quando Baby Budd vai aconselhar-se com Dano , um marinheiro mais experiente e único que pode dizer com certa margem de certeza o que se passa, o velho marinheiro guarda um silêncio de esfinge.
Esses silêncios e algumas escolhas e usos de palavras começam a criar uma imagem um tanto ambígua no leitor. Enquanto a narrativa fala em INVEJA, em ÍNDOLE PERVERSA, a escolha de palavras para o que Claggart sente parece indicar outro tipo de sentimento, escondido até mesmo do próprio Claggart:
"Por que Jemmy Legs (Claggart) estaria, ..., 'EM CIMA' do Belo Marujo?"
"Todavia, em seu íntimo, e não sem motivos, como o último encontro acidental talvez indique aos mais perspicazes, no fundo do coração, nos escaninhos secretos do coração, ele certamente estava 'em cima' de Billy."
"A paixão, a paixão em suas profundezas, não é coisa que demande palcos suntuosos para representar o seu papel".
"Exceção feita a outra pessoa, o mestre-d´armas talvez fosse o único homem a bordo da nau intelectualmente capaz de apreciar de modo adequado o fenômeno moral que se descortina em Billy Budd. E tal percepção servia apenas para intensificar a paixão que, assumindo várias formas secretas em seu interior, às vezes assumia a de desdém cínico, o desdém da inocência".
A palavra paixão é sempre utilizada no sentido clássico de "sentimentos fortes", que podem ser negativos ou positivos, mas o leitor sabe que está lá, em nenhum momento é dito, mas o leitor sabe que algo mais se esconde por entre as palavras!
"...por vezes a expressão melancólica tingia-se de um quê de desejo terno, como se Claggart pudesse até mesmo ter amado Billy, não fosse impedido por destino e maldição".
O texto é marcado por referências bíblicas, que eu suspeito serem muito mais do que as que são esclarecidas por meio de notas. Como eu não entendo muito de hermenêutica bíblica, não vou entrar em detalhes:
"No mesmo instante, o velo brumoso que pairava no oriente foi atravessado por um esplendor suave, como o do velo do Cordeiro de D´us entrevisto em visão mística" (essa é uma das passagens mais tocantes, embora eu não possa dar mais detalhes devido a 'spoilers').
Uma das únicas resenhas em vídeo sobre essa novela é a da Claire Scorzi, e, entre outras coisas, ela diz que "sendo mulher, não dá para aceitar o final. Se fosse homem, talvez".
Foi ao ouvir isso que me veio mais forte a impressão erótica que a figura de Billy Budd deve ter junto àqueles que amam eroticamente a um homem: o físico atlético de Billy, sua beleza clássica unida a uma perfeição moral quase infantil de tão ingênua e sincera. Tão diferente do ranço maligno dos Dons Juans, dos homens 'bem-sucedidos' (empreendedores da atualidade), dos experimentados e maliciosos em geral....
É uma sensação estranha, ao mesmo tempo que Billy não é fisicamente indefeso (pelo contrário, é muitíssimo ágil), sua beleza moral dá vontade de acolhe-lo entre os braços como ao velocino sagrado.
Aos politicamente correctos: esqueça as ideias atuais sobre "belezas alternativas". A ideia aqui é de uma beleza clássica: perfil norte-europeu, cachinhos doirados, olhos celestes, tez de porcelana (mesmo que tornada trigueira pelo sol constante da vida nos mares):
"Anglos, é assim que os chamam? E será que é por parecerem-se tanto com anjos?"
Nesse sentido a imagem de capa da edição da Cosac Naify me intriga: há uma referência óbvia entre Billy Budd e a bela criatura da imagem da capa. Mas há também uma referência que provavelmente não foi intencional entre a imagem de perfeição moral de Billy e o móvel da ação do homem da capa. Já que a maioria sequer sabe de quem se trata, me calo.
A tradução me levantou várias suspeitas, não graves, mas suficientes para eu considerar a edição portuguesa da editora Sistema Solar uma tradução bem mais cuidada do que a tradução da Cosac Naify.
O final é absolutamente coerente, mas fica aquela sensação da tese geral da obra do autor, Herman Melville: A perfeição moral não leva ao bem!!! pelo menos não em um mundo dominado pela malícia e pela afetação...
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Opinião com Spoilers
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Mas, afinal sobre o que trata essa novela?
Em um ensaio chamado "Billy Budd and Capital Punishment", Bruce Franklin propõe uma leitura que parece a mais esclarecedora a respeito da obra de Melville: a novela seria precipuamente um discurso liberal contra a pena de morte e uma reflexão a respeito do poder soberano do Estado sobre a vida e morte das pessoas sob seu jugo.
Billy Budd é um jovem marinheiro que, retirado do "DIREITOS DO HOMEM", tem um fim trágico a bordo do Belipotente. Como uma metáfora do que ocorre quando nos esquecemos dos direitos básicos do homem, que servem como freio ao Estado.
Em seu ensaio, Bruce Franklin levanta várias questões e argumentos muito esclarecedores:
- Contextualização histórica: o código militar da marinha britânica em 1.797 era ainda o "Bloody Code" de George III, um código que previa a pena de morte para inúmeros crimes (alguns irrelevantes como furto de cavalos). Previa também que mesmo crimes praticados sob circunstâncias de grave excitação, paixão repentina ou provocação seriam passíveis da pena capital (o que o código brasileiro chamaria de "emoção" como minorante da pena não estava previsto).
Havia na época em que o livro fora escrito um forte sentimento de reprovação da pena capital e dos meios empregados para sua execução.
Outra crítica bastante frequente à época era o claro cinismo que as leis que impunham a pena de morte carregavam. Na Inglaterra, o código de George III ainda previa a pena de morte para meros ladrões de cavalos, nos estados do sul dos EUA, raptar ou agredir uma mulher branca era crime passível de morte se cometido por um negro, mas levava à detenção e à multa se cometido por um branco, o que tornava o controle político de classe evidente.
Ainda de acordo com Bruce Franklin, o argumento utilizado pelo capitão Vere para a execução de Budd é tão cínico que chega a ser satírico: Billy Budd precisa ser enforcado para evitar um motim, para mostrar que nós, o capitão e superiores que estão a julgar Billy, precisam manter o controle sobre a classe subordinada de marinheiros. Esse era um argumento reiterado entre os defensores da pena de morte na época em que o texto foi escrito (1.891): a pena de morte serve para evitar que novos crimes aconteçam. Como era muitas vezes utilizada para manter privilégios de classe, a pena de morte na verdade mantinha o controle social.
O texto fora escrito entre 1.886 e 1.891 e para os leitores da época, os argumentos que são decisivos para júri formado pelo capitão Vere, seriam uma paródia obviamente sem sentido.
Fica presente também a ação conformativa e conservadora da religião na ação do capelão: este nada faz em relação à aplicação da pena. Até mesmo sua presença é quase sem sentido em um navio de guerra, se não fosse seu papel de mantenedor das forças estabelecidas das instituições.
Vale a pena uma leitura do ensaio para melhor compreensão do contexto histórico da novela:
http://andromeda.rutgers.edu/~hbf/bbcap.htm
O que fica claro para mim é que esse é um texto muito prolífico de interpretações e ver nessa novela apenas um embate trágico entre bem e mal ou uma mera intriga sexual é absurdamente raso.
Nesse sentido, acho que nenhuma adaptação para o cinema ou teatro tenha me agradado, seja pela imagem que eu fiz de Billy Budd, seja pelo aspecto um tanto restrito das adaptações (não vi a obra de Benjamin Britten, porém).
Obs.: Billy é fisica e moralmente tão perfeito que nem os últimos espasmos dos condenados à morte ele dá. Ocorre que é frequente que condenados à morte ejaculem (mecanismo natural pelo qual o corpo tenta inutilmente se reproduzir no último momento).
Não há espasmos... Há apenas a perfeição fisica e moral de uma mente e um corpo que até o último momento sequer sabem o que significa o medo da morte !!!!