Leon Idris 14/11/2015
Crise de duplos: a invenção de si mesmo
Com esse livro dei os primeiros passos na obra do Mutarelli, mas antes eu já me perguntava algo que deve ser recorrente entre os fãs dele: como é possível que ele tenha tantos talentos e faça tanta coisa boa ao mesmo tempo. O Grifo de Abdera brinca em responder essa pergunta da maneira mais inventiva possível. Se houvesse um subtítulo pra esse livro, poderia ser: Quem inventou Lourenço Mutarelli. Pois a premissa é basicamente esta: transformar o autor em personagem, desconstruí-lo, desmontá-lo em várias partes e, quem sabe, depois construí-lo de volta – ou então deixa-lo desmembrado, todas as peças na sua mão.
Antes que eu fale sobre o enredo, é importante dizer que esse livro nos encoraja a demolir a ideia de que deve haver uma distinção entre quadrinhos e Literatura, aquela com L maiúsculo. O Lourenço não só soube integrar muito bem as partes desenhadas e as partes escritas, como ele também criou a necessidade para esse formato. Os quadrinhos aqui não representam uma pausa na narrativa, eles são uma entrada íntima na fantasia que ele criou para personagens que primeiro nascem das palavras e depois se confundem nos traços caóticos dos quadrinhos.
Os desenhos fazem parte de uma narrativa composta em 3 partes, duas textuais, em prosa, e uma desenhada. O narrador é o autor responsável por tudo o que a gente um dia pensou ser obra do Mutarelli, pois aqui nós descobrimos que o Mutarelli não existe, ele foi inventado por um escritor introspectivo chamado Mauro Tule Cornelli, um anagrama de Lourenço Mutarelli. O Mauro teria sempre se escondido e colocado um cara chamado Raimundo para se fingir autor, dar entrevistas ir a eventos. O Raimundo é um bêbado que ao longo do livro só aparece no bar, naturalmente. Nesse livro, eu me senti inspecionando dois processos, duas linhas criativas: Uma que implode a identidade do autor, fazendo restar apenas personagens fictícios; e outra que te revela um autor inteiramente novo, um Mutarelli reinventado pela sombra de tudo o que ela já produziu antes desse livro.
E aqui vale uma menção a outro livro: O Café da Manhã dos Campeões, de Kurt Vonnegut. O café e O Grifo parecem se comunicar. Na minha visão eles são o duplo e o inverso de uma mesma crise. Se n’O Café o Vonnegut se joga dentro da ficção dos personagens que ele inventou em livros anteriores e depois sai inalterado de dentro dela, n’O Grifo Mutarelli faz a ficção dos seus personagens entrarem na sua realidade, para reinventá-la, rompê-la e permitir que ele, Mutarelli, saia dela alterado.
Cinco estrelas sem pestanejar! Melhor, dez; recomendo a leitura de ambos!
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