spoiler visualizarMaurino 13/12/2013
A emergência de mentes incorporadas no processo auto-organizador evolucionário.
A emergência de mentes incorporadas no processo auto-organizador evolucionário.
“Funcionalista naturalista” – como ele mesmo se define- o filósofo norte-americano Daniel Dennett concebe a mente como “domínio do virtual”, na medida em que, como um conjunto de construções teórico-lingüísticas, é “concebido como algo que tem uma multiplicidade de suportes materiais”, útil para explicar nossos comportamentos, o de animais, ou máquinas. Essa construção é por ele denominada “sistema intencional”.
No livro “Tipos de mentes”, em que ele sintetiza bem sua teoria como um todo, Dennett começa nos questionando: “Que tipos de mentes existem” e “como o sabemos”? E logo nos alerta quanto à “pertinência de se possuir uma mente”, “para questões de posicionamento moral”. Com que critérios afirmamos que algo tem ou não mente? Podemos saber intuitivamente que nós, homens, que compartilhamos um mundo subjetivo, e nos unimos pela conversação, temos mentes. Mas, e aos outros seres? E quanto às mentes que não se comunicam – a nós inacessíveis? Como estabelecer a fronteira entre as criaturas que têm e as que não têm mente? Nem sempre houve mentes, ele diz, portanto, nada melhor para começar a investigação do que considerar a “trajetória evolutiva histórica”.
O autor passa então a desenvolver os instrumentos da investigação – que tem por padrão as nossas próprias mentes. Nós, seres humanos, ele diz, podemos realizar “ações intencionais”; nós temos razões para agir e estamos cientes dessas razões – diferentemente de macromoléculas, como, por exemplo, a de DNA. Todavia, argumenta, esses “robôs auto-replicantes” constituem a base de toda a ação, significado e consciência do mundo, e pergunta: “Pode acontecer de um número suficiente desses homunculi – homenzinhos – estúpidos serem colocados juntos e o resultado ser uma pessoa consciente, real, com uma mente genuína?” Sim, segundo ele nós somos um conjunto de subsistemas hierarquicamente arranjados, a saber, um conjunto de homúnculos bitolados que, no todo, produz comportamento inteligente.
O método de pesquisa a ser utilizado, ele nos propõe, é o da “postura intencional”: “tratar a entidade em questão como um agente, para predizer – e com isto e em certo sentido explicar – suas ações ou movimentos.” Ele propõe que tratemos todos os “sistemas intencionais” como se eles fossem exatamente como nós (embora saibamos que não o são). Dennett afirma que mesmo os sistemas mais simples exibem intencionalidade rudimentar, ou melhor, se encontram sempre em “relacionalidade de intencionalidade”. A finalidade do método é entender como os agentes “escolhem” os seus objetos de “interesse”. Para Dennett aquelas macromoléculas originais auto-replicantes tem razões para o que fazem, “mas nenhuma idéia vaga sobre isso”. Mas ele vai mais além, e diz que a intencionalidade do cérebro, bem como a das partes que o compõem, desempenham um papel na economia de um sistema maior, ou seja, a “Mãe Natureza”, o “processo de evolução por seleção natural”. A intencionalidade dos estados cerebrais “deriva da intencionalidade do sistema ou processo que os projetou”, desde os tipos mais grosseiros de intencionalidade (na verdade, sistemas em relação). Nós somos, assim, artefatos projetados pela evolução, descendentes de robôs, bilhões de sistemas intencionais primitivos evoluindo em mútua relação.
O projeto da Mãe Natureza consiste em um processo de evolução por seleção natural que gradualmente construiu seres com previdência. Por bilhões de anos houve razões, mas não formuladores de razões; estes, isto é, nós, adivinhamos essas razões descrevendo padrões, usando a “postura intencional”. Trata-se de entender o que uma mente pode fazer. “Isso é tudo que importa”. Baseando-se no conceito de cibernética, Dennett entende a mente como um sistema auto-organizador, considerando-se aqui não só o conjunto de subsistemas de um sistema processador de informação, mas também este como um todo, em sua relação com o resto do mundo – com o qual evoluiu conjuntamente. Se as mentes humanas (e outras, primitivas) se encarnam em um tipo determinado de substrato material é porque o todo se constituiu bio-historicamente, sob a base das substâncias compatíveis com os corpos preexistentes (que, portanto, não são irrelevantes, considerando-se o processo histórico evolutivo). A natureza não teria construído o aparato de racionalidade sobre o aparato da regulação biológica, mas, a partir dele e com ele. Assim, a evolução “corporifica informação em todas as partes de todos os corpos”, pois, da mesma maneira que, tal qual sistema auto-organizador, meu corpo todo possui tanto de mim quanto o meu sistema nervoso – ou seja, minha mente se espalha para todas as partes de meu corpo (que, por sua vez, abriga sabedoria tanto no sentido ontogenético quanto filogenético [e sociogenético]) – minha mente incorporada também se espalha pelo mundo externo, junto com o qual evoluiu. A informação não está, portanto, “representada” em estruturas de meu sistema nervoso, mas sim, corporificada no mundo que evolui como uma rede intricada. Como diz Dennett, nós espalhamos nossa mente no mundo, e a partir desse mundo nós nos aperfeiçoamos e, recursivamente, enriquecemos nossas mentes.
“Informívoros”, os sistemas intencionais se organizam, na viagem da evolução, em sistemas cada vez mais sofisticados de intencionalidade, pelo processo de seleção natural. Os mais talentosos sistemas intencionais evoluíram a partir de (tornados sub-) sistemas múltiplos independentes e sobrepostos uns sobre os outros e com múltiplas interligações.
Concebendo uma estrutura organizacional que, em níveis, habilita os organismos a trabalhar com cada vez mais sofisticação, Dennett descreve, por meio de sua “Torre de Gerar e Testar”, criaturas darwinianas, criaturas skinnerianas, criaturas popperianas e criaturas gregorianas - a caminho da senciência, por sua “fome epistêmica”. Para Dennett, não existe um “elo perdido” da senciência. Todos os sistemas – desde os mais rudimentares – a apresentam, em diferentes graus. Ela não é um fenômeno adicional, com limite bem demarcado. Atividades elaboradas e talentos especiais podem ser administrados com confiança nos sistemas intencionais, sem que seja necessário imaginar que tais sistemas pensem pensamentos específicos. No entanto, a intencionalidade humana desenvolveu uma particularidade metafísica notável, a da generalização, com o advento da linguagem. Como sistema imanente à auto-organização do processo evolutivo como um todo, supõe-se que tal complexidade cognitiva co-evoluiu com a complexidade ambiental. Com a emergência da linguagem e dos símbolos o conhecimento no sistema se torna também conhecimento para o sistema. Não apenas limitada ao cérebro, ou até mesmo ao corpo próprio como um todo, a mente humana se espalha no mundo por meio de ferramentas externas, adquiridas “no curso do processo de abastecimento pelo estoque da cultura”. De todas elas, a mais importante é a linguagem. E por meio dela, e da manipulação conceitual que ela permite, nós nos tornamos “entendedores dos objetos que criamos”. É nesse processo, proteticamente reforçado, de seleção natural, que nós transformamos nossas mentes incorporadas: ou seja, no bojo de toda a rede estruturada de competências que permeia a vida. A mente é, pois, uma função, que emerge no processo auto-organizador evolucionário. Passamos então a pensar sobre as coisas inteligentes que fazemos. Quem? Nós, “eus”, que, sem nos restituir à natureza da qual emergimos, aprendemos a nos pensar como homúnculos, (sede da razão) que a tudo comandam, no centro dos nossos cérebros.