Delirium Nerd 05/10/2019
A infância de Carolina de Jesus em um Brasil pós-abolição
O livro “Diário de Bitita” trata da infância, adolescência e início da vida adulta de Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada”. O livro póstumo da autora foi lançado pela primeira vez na França, em 1982, com o título “Journal de Bitita”, e essa edição mais recente foi lançada pela SESI-SP Editora.
Antes de morrer, Carolina entregou dois cadernos com os manuscritos do livro para uma jornalista brasileira chamada Clélia Pisa. Posteriormente, o livro foi publicado no Brasil muito tempo depois da morte da autora.
Em 2019, Carolina de Jesus completaria 105 anos. Nascida em 14 de março de 1914, ela faleceu em 13 de fevereiro de 1977 aos 63 anos, ainda com textos inéditos a serem publicados. Conhecida mundialmente por seu livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada“, lançado pela primeira vez em 1960, ela registrou as impressões de sua infância com um olhar infantil e ao mesmo tempo crítico para o Brasil da época, no que viria se tornar o seu livro “Diário de Bitita“.
Racismo, machismo, pobreza e imigração são alguns dos temas do livro tratados pelo olhar de uma criança inteligente e espevitada, que aprendeu a ler no pouco tempo em que passou na escola. Bem como, Carolina foi uma das poucas pessoas negras que sabia ler na sua família.
Bitita, como era conhecida na infância por sua família e amigos, só ouviu o seu nome completo pela primeira vez quando começou a frequentar a escola, algo raro para as crianças negras da época. Então com quatro anos a pequena Bitita já atormentava a sua mãe com perguntas que ela não podia responder.
Apesar da abolição da escravidão ter acontecido em 1988, os vestígios desse longo período de sofrimento e descaso para o povo negro ainda eram fortes e presentes na década de 1920 e na mentalidade da sociedade. Nascida e criada no interior de São Paulo, as narrativas e observações de Bitita servem como um retrato da época, onde somos transportadas para uma sociedade que ainda tratava a população negra como escravos e inferiores. Assim, é interessante notar os paralelos com a nossa sociedade contemporânea em diversos aspectos apresentados no livro.
Como não houve reparação para os escravizados, que foram deixados a própria sorte, muitos continuaram nas fazendas ou foram atrás de empregos nas cidades, mas ainda assim a população vivia em extrema pobreza. Enquanto isso, os imigrantes recebiam terras e incentivos para prosperarem no país.
A sociedade, na época de Carolina de Jesus, ainda era agrícola e as oportunidades de emprego eram voltadas para o campo, onde eram explorados pelos patrões, ou nas casas das famílias ricas, onde eram alvos de preconceitos e maus-tratos.
A constante busca por emprego e alguma forma de sobrevivência são assuntos recorrentes no livro. Carolina de Jesus narra as desventuras de sua mãe e – posteriormente – de si mesma, passando de lugar em lugar em busca de algo que lhe seja bom e que pague de forma decente o seu esforço. Sofrendo explorações e humilhações de patrões, que agem como se ainda fossem senhores de escravos, eles se recusam a acolher Bitita quando ela fica enferma e não consegue trabalhar.
Tais sofrimentos da vida de quem é negro e pobre, é narrado pelos olhos de uma jovem que, apesar de todo o peso que carrega, encontra nos livros e na voracidade literária de qualquer coisa que apareça, uma forma de se elevar perante a sociedade que a oprime.
As questões do povo negro também são tratadas no livro, como os relacionamentos interraciais, que eram vistos como uma forma de integração na sociedade, principalmente pelos homens negros. A falta de perspectiva dessa população que não teve nenhum tipo de política de integração, assim como as violências perpetradas pelas autoridades e o racismo explícito – além da violência sexual sofrida pelas mulheres negras – são narrados de maneira quase didática.
Portanto, cada capítulo do livro de Carolina de Jesus é um pedaço da sociedade que vai se encaixando aos poucos e se transforma no Brasil da época, refletido nos problemas atuais; tudo isso usando a família e as experiências pelas quais a jovem Bitita e – futuramente – Carolina Maria de Jesus passa.
Para além dos relatos da infância da autora, “Diário de Bitita” é a visão de uma mulher negra, pobre e desfavorecida de uma sociedade que falhou com ela e com seus iguais de diversas formas. E essa mesma sociedade, mais tarde, cobrou deles um preço que lhes custou a vida em trabalhos que possibilitavam apenas a sua sobrevivência.
Por fim, a jovem Bitita é a representação de que, quando as pessoas têm acesso ao conhecimento, todo um novo mundo de questionamentos e possibilidades se abre. Dessa forma, permite que se possa sonhar e buscar algo melhor, assim como questionar a sociedade em que se vive e partir em busca de uma mudança.
Resenha completa no link abaixo:
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